Poemas de grandes autores

Postarei, nessa página, poemas que admiro, dos mais variados autores. Na verdade, compartilharei poemas que me marcaram e que, ao lê-los, despertaram (e ainda despertam) sentimentos profundos na minha alma. Poemas que confirmam a célebre frase do poeta espanhol Garcia Lorca: "Todas as coisas tem um mistério e a poesia é o mistério que todas as coisas tem." Espero que apreciem...



OLIVERIO GIRONDO

        


ARIDANDANTEMENTE


SIGO   

me sigo
e em outro absorto outro bêbado lodo baldio
por neurohirtos rumos horas ópio desfundos
me persigo
junto a tão tantas outras belas conchas corolas eroloucas
entre fugazes mortes sem memória
e a tantos outros outros grassos zeros crestados que me opam
entretanto sigo e me sigo
e me recontrassigo
de um extremo a outro estuário
aridandantemente
sem estar já comigo nem ser um outro outro



OLIVERIO GIRONDO


(poema de “En la Masmédula” – tradução de Régis Bonvicino)















CÉSAR VALEJJO




Considerando a frio, imparcialmente,
que o homem é triste, tosse e, no entanto,
se compraz em seu peito avermelhado;
que a única coisa que faz é compor-se
de dias;
que é lúgubre mamífero e se penteia...

Considerando
que o homem procede suavemente do trabalho
e repercute chefe, soa subordinado;
que o diagrama do tempo
é constante diorama em suas medalhas
e, mal abertos, seus olhos estudaram,
desde distantes tempos,
sua fórmula famélica de massa...

Compreendendo sem esforço
que o homem fica, às vezes, pensando,
como querendo chorar,
e, sujeito a se estender como objeto,
se faz bom carpinteiro, sua, mata
e depois canta, almoça, se abotoa...

Considerando também
que o homem é em verdade um animal
e, apesar disso, ao se voltar, me dá com sua tristeza na cara...

Examinando, enfim,
as suas peças encontradas, sua latrina,
sua desesperação, ao terminar seu dia atroz, borrando-o...

Compreendendo
que ele sabe que o amo,
que o odeio com afeto e me é, em suma, indiferente...

Considerando seus documentos gerais
e olhando com lentes aquele certificado
que prova que nasceu muito pequenino...

lhe faço um sinal,
vem,
e lhe dou um abraço, emocionado.
Que importa! Emocionado... Emocionado...


CÉSAR VALEJJO


(poema traduzido por Vicente Franz Cecim)















EUGÉNIO DE ANDRADE







Sê tu a palavra

1.
Sê tu a palavra,
branca rosa brava.

2.
Só o desejo é matinal.

3.
Poupar o coração
é permitir à morte
coroar-se de alegria.

4.
Morre
de ter ousado
na água amar o fogo.

5.
Beber-te a sede e partir
- eu sou de tão longe.

6.
Da chama à espada
o caminho é solitário.

7.
Que me quereis,
se me não dais
o que é tão meu?


EUGÉNIO DE ANDRADE














LAURA RIDING


 

de ECHOES


1.

Tendo aprendido tudo em tal temor na noite passada –
Não com meus olhos peritos no escuro,
Mas com meus dedos duros de susto,
Esticados para tocar um fantasma, fechando-se em mim –
Venho sorrindo.

2.

Criar inocentes para que virem monstros
Não é fertilidade mas fascínio
Nas mulheres.

3.

Foi o começo do tempo
Quando o eu ergueu-se do lodo pela primeira vez.
Foi o começo do sofrimento
Quando um anjo falou e de novo se calou.

4.

Feita a contagem dos séculos, números suspensos
E pesados sobre as esperanças inumeradas oprimem
O coração que toda mulher acalma sob o vestido
Junto à garganta, onde a memória se afivela na renda,
Um broche antigo.


5.

É missão dos homens espantar e caçar
Essa sereia luminar, o dia.
Alguém tem que esperar, alguém tem que guardar a noite.

6.

Se existem heróis em algum lugar
Desarme-os rapidamente e lhes dêem
Medalhas, funerais de honra,
E história para terem saudades,
Como meteorologistas anunciam a chuva com orgulho.

11.

“Eu remendo”, digo,
Sempre que algo se quebra,
“Colando o fim com o começo”.
Então com mãos bem limpas
E dedos pianizando
E arregaçando as mangas,
Sempre chego a uma mesa vazia.
Os estilhaços não esperam
Que as mangas se arregacem.
Sempre chego atrasada
E digo, “Eu remendo”.

12.

Suavemente, descendo no declive da mente,
Voam a flor, a folha, o tempo –
Tudo menos o nome feroz da planta,
Matronímico indestrutível de uma espécie.

13.

Os edifícios opiáceos do sono,
Os devaneios monótonos do noturnálito,
As faces interiores líqüidas e amorfas,
Os rasos terrores, nunca é longe acordar.

15.

... história trapaceada –
Que roubando o agora só tem antes
E roubando a gente só tem vultos.


17.

Perdoe-me, doador, se destruo seu presente!
É tanto quase o que eu queria,
Que só assim ficará perfeito.

18.

“Digna duma jóia”, dizem da beleza,
Sem certeza de qual é beleza e qual
É a preciosa mesma.

21.

Entre verbo e mundo jazem
Murchas eternidades de já.

23.

O amor é muito tudo, feito fogo.
Muita coisa queimando,
Mas só uma combustão.

24.

Meu endereço? Nos cafés, catedrais,
Campos verdes, terminais de mármore –
Lugar prolifera em mim.
Quando? Qualquer momento me encontra,
Migalha reiterada
Expandida no espaço.

25.

Façamos que conversamos
Ou vão pensar que morremos, e nos ressuscitar.
Hora, acene com brilho.
Nos resgate do resgate.


LAURA RIDING
(Collected poems – 1938)














LAWRENCE DURRELL






Poemas de Amor


I

Perdida, não podes me sorrir agora:
Nem tua contraparte de olhos cinza
Que habita a luz solar em sítios calmos:
Sempre essencial no luar enredado.

“Recorda” é um grito perdido no vento:
Um vazio ruído indistinto,
Muito notável numa noite surda
Que não presta atenção.

Esqueci até mesmo, ó ser pagão,
Como segurar mãos, suplicar,
Ó querida intolerável!
As mãos frouxas do demoníaco
Não traçam mais teus dedos, rede! – em minh’alma.

Tu... Eu...
Faces tão pequenas –
Flores num luar pontilhado
Lembradas quando a lua é louca moeda fosca
E o céu um dezembro de aço.


II


Não consigo fixar o momento preciso, a hora,
Mas num tempo qualquer, encontrarei, na certa,
Um rosto, o teu, entre rostos,
Notarei um passo
Entre passadas do vento numa rua deserta.
Talvez à tarde, na chuva suave
Que cai calçada em prata pelas casas,
Num ajuntamento vazio de homens e mulheres
Que pisoteiam as chamas de suas vidas no calçamento,
Teu sorriso outra vez me desafie:
Acima das goteiras monocórdicas, teu chamamento.

Voz entre vozes...
Rosto entre rostos...
Não posso fixar o momento e meu relógio presente,
Sopro de um dente-de-leão, mente, cruel;
Ainda assim, na surpresa desta hora declarada
Que farás, que farei eu?
Sorrir, um aos olhos do outro, de mãos dadas?
Ou algum diabrete filho do momento espontâneo
Divisa algum outro sinal?
Repousarei, sobre teus ombros minhas mãos
Ou me permitirei com um beijo
Perturbar sua consternação?


III


Que querias que eu escrevesse, na verdade?
Fragmentos, uma ou duas frases atenciosas
Para amainar a delícia de tua vaidade?
Pagar-te uma conta de palavras
Que te diminuísse, a tique te encolhes, minguante,
Quando sentenças formais de fino desejo
Fixam teu mínimo reflexo em tinta brilhante?
Aceitar só isto é o teu desejo?
- Paga de macarrão por uma piscadela provocante?
- Um pastiche por um beijo?

Não. Não pensarei tais ninharias.
Não disseque uma face a minha pena:
Ensaio sobre um tormento quando apenas
A narrar fábulas serve a tinta!
Ah, pode alguma coisa
Que engendra a mente
Voar perigosamente em asas imperfeitas?
Num beijo o músculo, força movente,
Feições preparadas para o riso; o pensamento
Pode transliterar esta mudança
Evocando dali
Mais sentido?

Palavras? Não são grandes o bastante.
O sentido não é lacaio do verbo.



IV



Ausente de ti, eu digo:
“Que não haja mais canções,
Essas peças defeituosas do coração.”
Que elas se adiem para os sentidos que conhecem,
Alcoviteiras das graças que o ar abarca,
 - O cheiro do narciso, a terra revolvida,
A neve. Que se espalhem e provem
Ser a música a abertura do amor
Cujos raros percalços talvez não se mostrem
Sobre o semblante do pensamento.

É claro que tentei e tentei,
Com minha tinta a cruzar esses alqueires
De páginas em branco,
Nada vejo, nas cicatrizes do coração.
A fábrica mais sutil dos sentidos protesta sempre:

“Chega de canções! Para que um obscuro sobretom musical
Disperse o melhor sentido das palavras!”



V


Tu também passarás, como outras amantes.
Não haverá mais nenhum braço a te abraçar.
Amor, como dedos úmidos contra o vidro
Desenham figuras perecíveis,
Como há um fim para toda narrativa,
Assim deve a corda pender solta no ar.
Estas pobres mãos suplicantes, querida,
Podem apenas dar graça pouca, antes do desespero,
Sustentar-te não tornará jovem a criação
Nem fará novo o padrão dos planetas.
O tempo não garante minha canção
Como o sol não perpetua o orvalho.

Insuportável encanto! Isso tudo
Vai para o nada ao deslizar de um beijo.



VI



Não há nenhum ser a horas tais,
Nenhum perfume ou pó a se mover:
Só este relógio vadiando,
Batendo nas portas incansavelmente
Com poderoso pensamento:
Ecos retornando à mente exausta.
A noite a brandir o ressentimento como um martelo,
Minutos assassinos, oscilando sobre mim,
E os negros divórcios de corpo e mente
Se cancelam devorados por este nada,
A Noite.
Tornei-me o autor de meu pensamento
E a laboriosa sombra aqui é meu demônio.

Deixado na brasa dessa cama e seu vazio,
Que posso ver, além do muro triplo?
Que sentido, além da lesão da alma,
Tua ausência, alva Compadecida?
A mente são algumas palhas,
Que o vento arrebanha em pelotão:
Um dedal de lava ardente a contemplar
Os cotovelos hirtos dessas árvores
Pesados de frutos,
Arranhando a parede vizinha como um bobo à mesa.
Realidades de mármore!
Estas, estas somente.

Ainda assim, pensamentos conspiram para te mostrar em pé,
Com a tarde obediente em teus cotovelos,
Num terraço naquela terra do sul,
Sem esses instrumentos do mal estar –
Silencio – este branco silencio e sua cama –
A quente mortalha de minha juventude –
Livre de tudo!
Ó, santa querida, às vezes te vejo
Relâmpago de verão em meu espírito –
Com toda a tua arrogância juvenil!
Tu, ligeireza de Pã!
Num terraço, no sul,
Esquecendo, Esquecendo.

O vento é teu único Romeu.


LAWRENCE DURRELL















PAUL VAN OSTAIJEN







VERSO 6
Eu não posso colecionar selos
Eu não posso colecionar fotos de mulheres
Eu não posso colecionar namoros
nem sabedoria
eu já não posso nada mais
          eu já não posso nada mais
Porque não apago a luz
          e não vou pra cama
Eu quero provar
          estar nú
          pelado quem sabe sim púrpura gelada
                                                e palidez
Não é assim o próprio princípio principiante
Eu não quero saber nada
eu não quero perguntar
          porque
          eu não me tornei um colecionador de selos
Eu começarei por dar meu fracasso
Eu começarei por dar minha falência
Eu me darei um pobre despedaço de terra
                              uma terra pisoteada
                              uma terra de urzes
                              uma cidade ocupada
Eu quero estar nu
     e começar



PAUL VAN OSTAIJEN
(tradução de Philippe Humblé e Walter Costa)














 GIORGOS SEFÉRIS

 




O Sr. Strátis Marinheiro descreve um homem



1.

Mas o que tem esse homem?
Passou a tarde inteira (ontem, anteontem e hoje) sentado de olhos fitos numa chama
esbarrou em mim de tarde quando subia a escada
disse-me:
“O corpo morre a água se turva a alma
hesita
e o vento esquece esquece tudo
mas a chama não muda.”
Disse-me ainda:
“Sabe, amo a uma mulher que se foi talvez para o mundo ínfero: não é por isso que pareço tão desolado
busco ser sustentado por uma chama
porque ela não muda.”
Depois contou-me a sua história.


2. Menino

Quando comecei a crescer as árvores me atormentavam
por que está rindo? já pensou em como a primavera é cruel com as crianças pequenas?
eu gostava muito de folhas verdes
acho que aprendi poucas letras porque o mata-borrão da minha carteira na escola era também verde
me atormentavam as raízes das árvores quando na tepidez do inverno vinham se enrolar no meu corpo
eu não via outros sonhos quando era menino
foi assim que conheci meu corpo.


3. Adolescente

No verão, quando eu tinha dezesseis anos, uma voz estranha me cantou no ouvido
lembro-me de que foi na praia, entre redes de pesca vermelhas e um barco esquecido na reia, esqueleto só
tentei me aproximar daquela voz encostando o ouvido à areia
a voz desapareceu
mas houve uma estrela cadente
como se pela primeira vez eu visse uma estrela cadente
e nos lábios a salsugem das ondas.
Naquela noite não vieram mais as raízes das árvores.
No outro dia uma viagem se abriu e se fechou na minha mente como um livro ilustrado:
pensei em ir toda noite à praia
para entender a praia e depois fazer-me ao mar
no terceiro dia amei uma garota sobre uma colina
tinha uma casinha branca como uma capela
uma mãe idosa de óculos debruçada sobre agulhas, sempre silenciosa
um vaso de manjericão outro de cravos
creio que ela se chamava Vasso Frosso ou Dílio;
foi assim que eu esqueci o mar.
Numa segunda-feira de outubro
achei um cântaro partido diante da casinha branca
e Basso (para simplificar) apareceu vestida de luto cabelos por pentear e olhos avermelhados
quando a interroguei:
“Morreu, o médico diz que morreu porque não degolamos o galo preto sobre os alicerces... onde achar um galo preto por aqui... aqui só há rebanhos brancos... na feira as aves são vendidas já sem penas...”
Eu não imaginava o luto e a morte assim
fui-me embora e voltei de novo para o mar.
À noite, no convés do “São Nicolau”, sonhei que uma velhíssima oliveira derramava lágrimas.


4. Rapaz

Viajei durante um ano com o Capitão Odisseu
dei-me bem
quando o tempo era bom eu me sentava junto da sereia de
proa cantava-lhe os lábios rubros enquanto olhava para os peixes-voadores
quando o tempo era mau eu me escondia no porão junto do cão de guarda, que me aquecia.
No fim do ano avistei certa manhã uns minaretes
o patrão do barco me explicou:
“É Santa Sofia, de noite vou te levar à casa de mulheres”.
Foi assim que conheci mulheres vestidas só de meias
sim, as que escolhemos.
Era um lugar estranho.
Um horto com duas nogueiras um parreiral um poço
um muro à volta com cacos de vidro em cima
uma regueira cantava: “No correr da minha vida”.
Vi então pela primeira vez
rabiscado com carvão no muro
um coração atravessado pela seta costumeira.
Vi as folhas amareladas do parreiral
no chão
grudadas às lajes sobre a lama vil
e dei um passo para regressar ao barco.
Aí o patrão me agarrou pelo colarinho e me atirou no poço:
a água tépida e tanta vida em derredor da pele...
Depois uma rapariga, brincando descuidosa com o seio direito, disse-me:
“Sou de Rodes, aos 13 anos fui dada por esposa em troca de 100 moedinhas”.
Lembrei-me do cântaro partido em plena tarde e refleti:
“Esta vai morrer também, como há de morrer?”
Disse-lhe apenas:
“Trata de não desperdiçar essa vida que é tua”.
À noite no barco não agüentei ficar junto da sereia, estava envergonhado.


5. Homem

Desde então vi muitas paisagens novas: campos verdes que unem o céu à terra, o homem à semente, numa irresistível umidade; plátanos e abetos; lagos com visões confusas e cisnes imortais porque haviam perdido a voz – cenários que me eram explicados por meu companheiro voluntário, um ator ambulante, enquanto tocava a longa corneta que lhe arruinara os lábios e demolia com uma voz estrídula como a trombeta de Jericó tudo quanto lograra construir. Vi também um ícone antigo numa sala de teto baixo; muita gente o admirava. Representava a ressurreição de Lázaro. Não me lembro nem do Cristo nem de Lázaro. Apenas, num dos cantos do quadro, a repugnância pintada num rosto que contemplava o milagre como se o estivesse cheirando. Forcejava por proteger a respiração com um pano enorme que lhe pendia da cabeça. Este senhor do “Renascimento” me ensinou a não esperar muita coisa do segundo advento...

Diziam-nos que venceríamos quando nos submetêssemos.
Submetemo-nos e encontramos a cinza.
Diziam-nos que venceríamos quando amássemos.
Amamos e encontramos a cinza.
Diziam-nos que venceríamos quando renunciássemos à nossa vida.
Renunciamos e encontramos a cinza.

Encontramos a cinza. Resta-nos encontrar a nossa vida, agora que já não temos coisa alguma. Imagino que aquele capaz de reencontrar sua vida, mau grado tanto papelório, tantos sentimentos, tantas disputas, tanto ensinamento, há de ser alguém como nós, só que de memória um pouco mais dura. A nós é impossível, ainda recordamos aquilo de que abrimos mão. Aquele só recordará o quanto ganhou a cada oferta. Que pode recordar uma chama? Se recordar um pouco menos do que precisa, apaga-se; se recordar um pouco mais, apaga-se. Com apagar-se, poderia nos ensinar a recordar com justeza. Eu terminei; possa alguém mais começar de onde terminei. Há horas em que tenho a impressão de ter chegado ao fim, de que todas as coisas estão no devido lugar, prontas para cantar em coro. A máquina na iminência de partir. Posso até imagina-la viva, em movimento, como algo inconcebivelmente novo. Mas há ainda alguma coisa: um ínfimo obstáculo, um grãozinho de areia, que diminui, diminui sem que se possa ser aniquilado. Não sei o que é preciso dizer, o que é preciso fazer. Esse obstáculo me parece algo assim como um nó de pranto que, inserido nalguma articulação de orquestra, a emudece até ela desfazer-se. E tenho a opressiva sensação de que toda a vida que me resta não basta para dissolver a gota dentro da minha alma. E me persegue o pensamento de que se me queimassem vivo esse instante obstinado seria o último a render-se.
Quem haverá de ajudar-nos? Certa tarde, quando ainda estava no barco, vi-me sozinho numa ilha, inválido ao sol. Uma brisa confortadora me trazia ternos pensamentos, quando vieram sentar-se, um pouco abaixo de mim, uma jovem cujo vestido leve deixava transparecer-lhe o corpo esbelto e firme, e um homem silencioso que, a pequena distância, lhe fitava os olhos. Falavam numa língua que eu não compreendia. Ela o chamava de Jim. As palavras deles não tinham peso algum e seus olhares absortos e imóveis lhes cegavam os olhos. Penso sempre neles porque são as únicas pessoas que conheci na vida que não tinham aquela expressão de rapinantes ou de acossados que conheci em todos os outros homens. Aquela expressão que os filia à alcatéia dos lobos ou ao rebanho dos cordeiros. Voltei a ver os dois numa dessas capelas insulares que a gente só encontra ao tropeçar nelas e perde tão logo se afasta. Mantinham ainda a mesma distância, mas depois se aproximaram um do outro e se beijaram. A mulher tornou-se uma imagem indistinta e sumiu-se, miúda que era. Eu me perguntava se sabiam ter escapado das redes do mundo.
É tempo de ir-me. Conheço um pinheiro junto ao mar que se debruça sobre as águas. No pino do dia, oferece ao corpo fatigado uma sombra na medida de nossa vida, e de noite o vento, ao passar por suas agulhas, entoa uma canção estranha, como a de almas que abolissem a morte no momento em que recomeçassem a ser carne e lábios. Uma vez pernoitei sob essa árvore. Ao amanhecer senti-me novo como se me tivessem talhado naquele instante de pedreira.
Ah! viver pelo menos assim, indiferente.


GIORGOS SEFÉRIS
(“De Caderno de Exercícios I”)
Londres, 5 de junho de 1932.

















 e e cummings





quando as serpentes paguem para ser serpentes
e o sol para ganhar seu pão recorra à greve -
quando o espinho olhe a rosa com suspeita
e o arco-íris faça seguro contra a neve

quando tordo nenhum puder cantar enquanto
todos os mochos não fizerem a censura
- e os mares tenham que fechar para balanço
se as ondas não tiverem posto a assinatura

quando o carvalho pedir vênia ao vidoeiro
para gerar seu fruto - o vale casse a vista
dos montes, porque são altos, e fevereiro
acuse março de ser terrorista

então acreditaremos nessa incrí
vel humanidade inanimal (e só aí)


e e cummings 














GEORG TRAKL





CANÇAO DE KASPARHAUSER
                                  para Bessie Loos

Ele de fato amava o sol que descia a colina purpúreo,
Os caminhos da floresta, o canto do pássaro negro
E a alegria do verde.

Sisuda era sua morada à sombra da árvore
E puro o seu rosto.
Deus disse ao seu coração uma doce chama:
Homem!

Tranqüilo, o seu passo encontrou a cidade à noite;
O lamento sombrio de sua boca:
Quero tomar-me cavaleiro.

Seguiram-no porém arbusto e animal,
Casa e jardim crepuscular de gente branca,
E procurava-o seu assassino.

Primavera, verão e belo o outono
Do justo, seu passo leve
Pelos quartos escuros de sonhadores.

À noite ficava sozinho com sua estrela;
Viu que nevava em galhos nus,
E a sombra do assassino no tenebroso vestíbulo da casa.

Prateada, tombou a cabeça do não-nascido.


GEORG TRAKL

(tradução: Cláudia Cavalcante)
 














EDMOND JABÈS

 


A QUEM SE FALA QUANDO SE ESCREVE...
(fragmento)


- A quem se fala quando se escreve?
- A um ser acerca de quem nunca se venha a saber se é si mesmo ou um outro.
- Fala-se a um desconhecido?
- Seria absurdo dizer dessa maneira, porém, é a única coisa que podíamos dizer: não se dirigir a ninguém, quando se fala, talvez seja falar apenas consigo mesmo; mas como falar consigo sem imediatamente fazer de si um outro?
- Sobretudo porque nós somos, nós, esse outro.
- Não estou dizendo isso . Você não me compreendeu, ou, fui eu que não me fiz compreender. Esse outro não é eu mesmo, nem minha invenção. Ele é minha descoberta do outro em mim.
Esboçar o perfil de uma palavra numa folha já é estabelecer uma conversa com a página branca.
Tudo o que vemos, escutamos, tudo do que nos aproximamos, uma vez reconhecido, entra em diálogo conosco.
O livro seria, assim, apenas o espaço circunscrito pela palavra aberta à palavra. Não somos escritos onde ela se escreve, mas inscritos onde ela se apaga.
Há uma linguagem própria que a inscrição tumular nos impõe e nos força ao silêncio. Pesado silêncio em busca de um signo.
Ah! outro - homem, mundo, Deus - mais nós mesmos do que poderíamos sê-lo no segredo de nossas confissões; palavra de uma palavra à qual não ousamos ligar nosso nome; pois se somos tributários dela, ela, contrariamente, mais nos escapa do que nos pertence.
Brancura, brancura de sangue. Séculos de orgulho e de derrotas jazem no vocábulo. Você os desperta ao revelá-lo.
Um livro se entreabre quando nos abandonamos.

  
EDMOND JABÈS
(tradução: Caio Meira)







 

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