Contos


Marilu, olhos e flores




-              Acorda, Malu! Acorda! – disse Sara, sacudindo, apressada e bruscamente, o seu ombro.
- Está chegando outro paciente.
Marilu abriu os olhos, assustada – começava a sonhar. As pálpebras pesavam como se estivessem suspensas por chumbos. Sentia-se perdida, confusa, mas, de súbito, a consciência se recobrou, treinada pela rotina do ofício de enfermeira.
Olhou, automaticamente, o relógio de pulso: vinte e uma horas e vinte e sete minutos. “Não dormi nem trinta minutos, esses plantões ainda vão me matar” – reclamou para si mesma em pensamento, enquanto fazia homérico esforço para se levantar. “Ainda falta mais de uma hora para o fim do martírio” – lamentou, no momento em que suas autoqueixas foram interrompidas pela voz insistente da companheira:
-              Apressa-se! O sujeito tomou dois tiros... vamos pra sala de cirurgia. Vai!
-         Estou indo. Estou indo – respondeu sem vontade, fazendo uma careta de nojo por  causa do café frio e passado que engolia, porém este, apesar do mau gosto, tinha certo efeito animador.

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Vinte e duas horas e quarenta minutos. Marilu descia o elevador do Hospital Carmino Caricchio do bairro Tatuapé. Tinha acabado de passar o plantão para a sua substituta. “Doze horas: só louco trabalha doze horas seguidas” – censurava-se ao acender um cigarro e cumprimentar o segurança. Como era de praxe, andava aqueles três quarteirões até a estação Carrão do metrô, cheia de piedade e crítica para consigo mesma: era seu meio de não pensar no cansaço do corpo, seu automatismo fisiológico inconsciente. “Ataxia, gastrostomia, nevralgia, mielografia, hiponatremia... ah... não agüento mais tantos ias... um dia mando tudo pro espaço... é... esse paciente não tinha jeito, dois balaços no peito, pulmão direito perfurado, traumatismo na quarta vértebra torácica, vários outros órgãos danificados seriamente, e ainda era hemofílico o azarado... foi melhor que se fosse de uma vez: era caso de coma dépassé, viraria um vegetal. Teve sorte o pobre diabo”.
E assim dava passo após passo, sem se dar conta do estado deprimente em que se encontrava. Só voltava a si já no vagão do trem, quando via seu reflexo no vidro: as enormes olheiras, o rosto como que se tivesse acabado de sair de um campo de batalha, a fisionomia triste e agastada.

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Vinte e duas horas e cinqüenta e oito minutos.
-              Tim! Tom! Estação Tatuapé – anunciava a voz do operador do trem, voz que sempre a
acordava.
“Por que essa maldita voz?! Como odeio essa estação. Lá vêm todos aqueles adolescentes com sorrisos nos lábios e bradando, em vez de conversarem. São uns tolos mal educados” – pensou zangada.
Marilu não suportava a alegria banal dos jovens: sempre a tornava nostálgica. Ela um dia fora assim. Jovem, bela, feliz. Mediocremente tola e feliz. Achava que tinha sido enganada. E, para piorar, acreditara nas mentiras. Todos os familiares, amigos, conhecidos, tinham lhe dito:
-              Como você é linda Marilu...
-              Vai se dar bem na vida...
-              Vai se casar com um ricaço...
-              Vai ser modelo...
-              Vai virar atriz de novela...
 Marilu não compreendia porquê não era feliz. Está certo que ela não buscou na sua vida nenhuma dessas profissões glamourosas, nenhum marido rico. “Mas essas coisas não se buscam” – era como se confortava.
Quando via essas belas raparigas, lembrava-se da sua própria beleza de outrora. Como fora bela aquela Marilu. Não que ainda não tivesse beleza, mas como fora bela. Tinha olhos negros como o céu de noites sem lua e estrelas. O rosto bem feito e delicado. O nariz era uma hipótese de porcelana no seu rosto largo, de tão pequenino. A boca carnuda, sensual, fugidia. Belos cabelos negros e lisos como os de Iracema de Alencar. Corpo magro e bem torneado. Falanges um pouco compridas em braços que poderiam ser confundidos com o pescoço dos cisnes.  Ah... seus olhos arredondados e ligeiramente puxados... assemelhava-se a rainha do Egito Antigo. “Eu era mais bela que todas essas menininhas. Não existia um só rapaz que não me desejasse. Por que não fui feliz?” – indagava-se.
Logo que seu inconveniente reflexo aparecia no vidro, como uma imagem não autorizada, porém necessária, Marilu encontrava um motivo: “Estou péssima. Cadê aquele brilho que carregava nos olhos... só me resta olhos sem paixão” – sentenciava-se, fechando-se na própria tristeza, diria uma flor que pressente a chegada do inverno. Esquecia-se do rosto que já não era tão bem marcado. Do atual cabelo curto e prático, como a sua vida. Dos lábios descorados. Do nariz, que num rosto mais maduro e cheio, parecia se negar a existir. Como todo o resto custava a acontecer. E do corpo, que como a alma, estava fatigado, com uma dose a mais de tecido adiposo, e já não mais exalava a doçura das aves em vôo.

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Vinte e três horas e dezesseis minutos. Marilu desperta na parada da Estação Bresser. Pegara no sono. Seus olhos permanecem turvos por alguns instantes. Quando vê a placa com o nome da estação, lamenta: “Ainda aqui... até chegar no Paraíso... que droga: tenho que fazer baldeação”.
No momento em que vira a cabeça para conferir as horas no relógio de pulso, vê um jovem sentado no banco em frente. Ele lê um livro. Parece calmo e distante. Cabelos compridos e desenvoltos, belo rosto, corpo bem feito e que incomparável par de olhos possui aquele jovem. Marilu sente-se hipnotizada: “Que belo rapaz. Que olhos brilhantes: parecem faróis numa praia noturna e deserta. Como é bonito... e tão jovem”. Nesse exato instante algo guardado no mais fundo de si renasce. Algo que ela escondera tão disfarçadamente que jamais encontrara. Sentiu como que um vulcão dentro do peito. Um vulcão há muito adormecido, que agora começava a quebrar a crosta que sua própria lava formou. É quase impossível descrever o que ela sentia. Era algo como uma tempestade, um grito agudo e dolorido, dois tiros no peito, uma vida renascendo enquanto outra acabava de se esvair, uma sutil rosa que começava a se abrir com o suave sopro da primavera. “Estou apaixonada...” – suspira Marilu para o próprio coração, que parecia exigir uma resposta do porquê voltava a funcionar, depois de anos de inércia. “Está lendo Pessoa. Gostava tanto de Pessoa. Como eram aqueles versos? Deixe-me lembrar:
‘Não quero rosas, desde que haja rosas.
Quero-as só quando não as possa haver.
Que hei de fazer das coisas
Que qualquer mão pode colher?’
O rapaz é um romântico: sempre esperei um belo poeta.”
Subitamente Marilu parecia mais desperta do que nunca. Tão desperta que se viu a olhar para o rapaz, viu seu vulto de mulher apaixonada. Sua espera, todas as suas recusas pareceram se justificar. Sentiu as pernas moles (de cansaço ou de susto?), o coração pulsava-lhe a mil. Também viu que o rapaz a olhou de soslaio e esboçou um leve e malicioso sorriso. Desviou o olhar que não durou mais que alguns segundos. Olhou para o lado, viu que uma senhora a observava e corou violentamente. E violentamente sentiu-se envergonhada, invadida e profanada. “Que velha enxerida, vai cuidar da sua vida... mas... mas... talvez ela tenha razão. Como pode uma mulher de quase quarenta anos se apaixonar por um rapazola que não parece ter mais de vinte e cinco?” – refletiu num misto de ódio, rancor e agradecimento.
Marilu deu mais uma olhadela para o rapaz, que retribuiu o olhar. Aqueles dois faróis romperam a negra névoa que cobriam os seus olhos, adentraram em sua retina. Eram demasiado poderosos e ofuscantes. Ela lembrou-se do seu rosto cansado, da sua perdida beleza. Ela se cegou. Abaixou de supetão as pálpebras. Ainda pode ver os últimos raios daqueles dois sóis: o crepúsculo inigualável nos mares. Engoliu um soluço seco e pegadiço. Pensou: “Não, ele zomba de mim, deve ser um sádico”.E fechou-se novamente.

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Vinte e três horas e vinte e oito minutos. O trem diminui a velocidade. Marilu continua com os olhos cerrados: tem medo de abri-los e não mais encontrar o rapaz. Fingia dormir, mas todo o sono passara. Passara ela num turbilhão de pensamentos nos últimos minutos: furacões de lembranças, maremotos de anseios, suturas de tecidos rasgados à faca, olhos de pacientes, olhos de crianças, idosos, mendigos, olhos de mortos e de sangue, olhos e mais olhos, tépidas angústias, oprobriosos desejos, flores se abrindo, pétalas fechando-se, inverno, primavera, oceanos, geadas, cubarins, taquicardia, AVC, ataques crônicos de pânicos, poetas e mais poetas, versos e mais versos, recordações de infância, mãe que se foi, pai moribundo, irmãos que não teve, e olhos, olhos de cão, de médicos, de menina chorando sobre o cadáver da mãe, olhos negros e perdidos nas rodas da alma, olhos dos filhos que poderia ter tido, olhos mortos, olhos vivos, soromas, flores, versos, azaléias azuis como o mar, orquídeas roxas como a cianose, liberdade, olhos da liberdade, escolhas, rosas escarlates, hemoglobina, curativos, fome de amor, olhos de amor, olhos da noite, solidão, olhos mortos, flores, olhos mortos das flores.
O trem está cada vez mais lento. Ela sabe que aquela odiosa e aborrecedora voz surgirá depois do apito. Deseja no mais íntimo do seu ser que a voz diga: “Por problemas técnicos, o trem ficará com as portas fechadas e parado por toda a eternida...” Mas, antes de concluir o desejo ouve o apito, estremece. A voz diz:
-              Estação Sé. Desembarquem pelo lado esquerdo do trem.
Marilu sente as mãos em estado de hipotermia, o pulso sofre nítida braquicardia, a respiração parece entrar em apnéia e o coração, por vontade própria, pára. Aflita, abre os olhos. Lá está o poeta. Fecha graciosa e lentamente seu livro, suspira. Seus olhos perdem-se em devaneios. Parecem repletos de amor. Ela pensa que tem que descer nesta estação. Mas não quer. O rapaz não demonstra que descerá. Marilu tem incontrolável vontade de se levantar, e, inesperadamente, beijá-lo. O trem está quase parado. Ela se levanta. Olha novamente para os olhos do rapaz que estão lá: aquecendo sua inócua vida. O rapaz lhe sorri outra vez. Ela dá um passo. Depois outro. E mais outro. Ele como que a aguarda, sorridente no seu reino de beleza e juventude. Parece se sentir um Alexandre ou Kan ao final de uma batalha vencida. O trem pára. As pernas de Marilu, voluntariamente, desviam-se do trajeto traçado. Ela tenta resistir. Inútil. Um, dois, três, quatro passos. Já está fora do trem. Percebe braços lhe empurrando pelas costas. As pernas dão mais dois passos. Finalmente retoma o controle do corpo. Estanca-se. Ouve o apito. Vira-se imediatamente. Marilu vê a porta se fechando. Quer correr, segurar a porta, entrar no vagão, olhar nos olhos do rapaz, dizer-lhe: “meu amor, finalmente retornar-te”, beijar-lhe loucamente. Mas se recorda do seu tempo de beleza. De juventude. Vem a sua passiva memória o rosto de Júlio.
“Quando eu tinha dezenove anos amava um rapaz tão belo como esse. Os olhos de Júlio eram tão fortes, seguros, tão lindos. Mas eu não fiquei com ele. Deixei que se fosse, e hoje...” – recordava-se, quando foi interrompida pelo estalar da porta fechada, o trem que começa a retomar sua marcha. Teve vontade de correr atrás do trem. Bater na porta. Bater e gritar. Gritar insanamente. Pular nos trilhos. Mas não o fez. Estava como que pregada ao chão: dir-se-ia que a gravidade a sucumbia. Um peso insuportável de tão leve nos ombros. Não correu, não gritou, não pulou. Somente acompanhou o trem com os olhos e pensou amargamente: “Jamais o encontrarei novamente”.

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Quatro horas e trinta e nove minutos. Marilu abre os olhos drasticamente. Vacilante, perdida: estivera sonhando. Sua garganta está seca. Tem sede. “Onde estou?”. Olha para o teto escuro, imperceptível. Não compreende. Passa a mão na face para desanuviar os olhos. Tateia o rosto úmido. Lembra-se que chorou e enorme repulsa de si mesma a invade. “Estive chorando como uma menina” – acusa-se.
Deitada de costas, estende o membro superior esquerdo, num gesto indeciso e vazio. Não apalpa nada além do lençol desarrumado. Fecha delicadamente as falanges, segurando o lençol em desespero contido. “Nada. Eu só. Eu comigo mesma”. Um buraco lhe domina o peito: vácuo. Distingue dois imensos olhos no teto negro. À sua consciência ressurgem fragmentos do sonho: olhos de Júlio, seus próprios olhos, olhos de mortos, olhos vivos, os olhos do rapaz do trem. Para afastar a visão do sonho, tenta reconstituir a face do rapaz, mas só se recorda dos olhos. Um soluço amargo, indesejado, repugnante, muito viscoso, perturba-lhe a faringe.  Uma lágrima escorre do seu sombrio olho. Lágrima de dor. De fugitiva. De estrangeiro desconsolado em terras distantes. O corpo clama por água. Seu corpo se ergue. Senta-se na cama e algo como uma pontada lhe penetra na nuca. Levanta-se. Começa a andar. “Malditas pernas” – pensa. Vai a cozinha. Abre a geladeira. As pálpebras se contraem em reação a luz daquela caixa do pólo. Sua mão que tateara no escuro do quarto e no da cozinha, agora tateia no claro da geladeira. Segura sem forças a garrafa de água. Bebe no gargalo. O frio da água corta-lhe a garganta como se bebesse cacos de vidro. Guarda a garrafa. Caminha até o banheiro sem ter pensado em ir ao banheiro. Abre a porta, acende a luz, distende as pálpebras com virulento esforço. Capta seu rosto triste no reflexo do espelho. No mesmo espelho surge seu uniforme branco de enfermeira, pendurado no espaço. Relembra-se que terá que voltar ao hospital, ao seu sufocante serviço. Apaga a luz. Sem pensar em nada vai até o quarto. Deita seu corpo nu e solitário na cama. Fecha os olhos negros.

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Quatro horas e quarenta e sete minutos. Marilu adormece como uma flor que fecha, impetuosa e estranhamente, suas pétalas, por haver descoberto seu estado vegetal, diria um estado de coma auto-induzido, naquele fim de madrugada sem sonhos, olhos ou esperanças.

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FIM

























Em busca dos amores possíveis





No meio de uma conversa na qual não há espaços para parolas, com um desses amigos que admiramos pela fluência das palavras, pela busca de idéias originais e por uma boa dose de identificação nos mais variados assuntos, fui interpelado, já depois de uns tragos de whisky, sobre o que andava pensando a respeito das possibilidades do amor entre homens e mulheres, assunto esse que se nos afigura – a nós homens ignorantes – uma perpétua decifração de obscuros hieróglifos numa língua, paradoxalmente, próxima demais.
Pela intrínseca dificuldade do tema, resolvi ganhar um tempo dando vida à mais um cigarro preso entre meus lábios, enquanto articulava com meus pensamentos uma reposta à altura da importância do assunto. Aprumei-me na cadeira, sorvi um bom trago de cigarro, dispensei na fumaça os derradeiros resquícios de possíveis dúvidas, e respondi-lhe da seguinte forma:
-               Bem, meu caro, creio que há gritantes contrastes no significado do amor para os homens e para as mulheres. Permita-me usar um mecanismo simples de comparação para ilustrar o que penso: suponhamos que o amor seja uma grande obra literária, digamos, o amor é “Em Busca do Tempo Perdido” de Proust. Melhor ainda, para fugirmos das abstrações, imaginemos que o objeto do amor seja essa fantástica obra. O que estimulará o ser masculino para realizar tão estafante leitura, será a própria beleza sugestiva que o título dá a obra, um comentário despropositado que ouviu de um amigo sobre sua importância fundamental para a história da literatura ou até o próprio desafio que tão gigantesca e pretensiosa obra parece propor. Acontece que o homem, por sua própria natureza, depois de ter acabado a leitura de “No caminho de Swan”, deixará os outros seis volumes para uma leitura posterior, sem data marcada, pois não verá a necessidade de completar a leitura para conhecer a essência da obra: este todo será resultado de prematuras, porém deliciosas, idealizações. Agora na mulher o processo é bem diverso. O ser feminino só será atraído para realizar tal leitura, após ter lido não sei quantas resenhas críticas sobre a obra, ter examinado, detalhadamente, parte por parte, e, ter comprovado – numa complexa mistura de sensibilidade e pragmatismo – que as horas dispensadas para a tarefa valerão realmente a pena. E a mulher, também por sua própria natureza, lerá todos os tomos do livro, linha por linha, capítulo por capítulo, parte por parte (até reiniciará a leitura se achar prudente, quantas vezes julgar importante), tudo para tentar compreender todas as propostas estéticas e idéias da obra, e, somente após tudo isso, sentirá segurança para emitir qualquer opinião a respeito do que lera.
Nesse momento, recordo-me, que fiz uma rápida pausa para beber e aliviar a secura da garganta, esperando que meu companheiro se manifestasse e não deixasse a conversa se transformar em palestra. Porém, ao perscrutar os olhos do meu paciente amigo, entendi, num lampejo, que ele estava perdido nos próprios pensamentos e, ao mesmo tempo, esperava que eu desse prosseguimento na minha opinião:
-               Como notou, meu amigo, só tratei dos motivos diferentes que levam o homem e a mulher a se dedicarem ao objeto do amor... melhor dizendo: esse é apenas o principio da relação, o começo da história. Não me pergunte quanto tempo durará o vislumbre do homem com suas idealizações sobre o que deixou de ler, ou quanto tempo a mulher continuará com a impressão, conhecendo todo o texto, que aquela é a melhor obra já escrita. Não saberia dizê-lo. E creio, firmemente, que nenhum ser humano minimamente sensato tentaria fazê-lo. O tempo que dura tais circunstâncias, que mantém dois seres tão estranhos um para o outro, e tão estrangeiros para si mesmos, sob o faustuoso encanto de Eros, é ininteligível, incompreensível, e, talvez por isso mesmo, violentamente nos seduz até suas vacilantes garras. Todavia, posso atrever-me a alguns comentários quanto às causas que levam ao desfecho da história. Penso que o homem somente será tentado a continuar sua leitura interrompida, quando tiver o conhecimento que existem outras obras tão atraentes e desafiadoras – digamos um “Ulysses” do Joyce, um “Rayuella” do Cortázar ou a trilogia “Os Caminhos da Liberdade” do Sartre – quanto a anterior, que se assemelhem ao seu brilho. Aí, meu caro, o homem sentirá enorme necessidade de terminar a inacabada leitura, às vezes paralelamente com o começo da nova, e lerá os outros seis volumes assídua e minuciosamente. No entanto, os olhos que percorrerão “À sombra das raparigas em flor” até “O tempo redescoberto” já não serão como os de outrora: perderam a ilusão da incomparabilidade e a certeza do eterno. E o homem descobrirá, com uma dor gradativa e crescente, em cada nova parte do livro, que o enredo é pouco parecido com o que imaginara. Quando concluir a leitura um peso angustiante se apossará da sua alma, peso esse que trará ao homem a triste impressão de que jamais deveria ter lido tal obra, pois antevê, nostalgicamente, sua indelével e torturante presença pelo resto da vida. Quanto à mulher, por ela já conhecer toda a grandeza e, conseqüentemente, todos os limites da obra, dedicar-se-á a leitura de qualquer novela barata ou mal escrito livro policial, sempre que isso for de encontro a sua volubilidade, sem precisar de grandes motivos. O mais complicado de entender é que a mulher sempre acha possível conciliar um clássico literário como “Em Busca do Tempo Perdido” com qualquer uma dessas obras de valor duvidoso, e, não raro, criará um juízo ainda mais duvidoso de que essas outras literaturas de botequim possuem maior valor do que a primeira grande obra a que se dedicou.
No momento que encerrei minha exposição, apossou-se de mim uma espécie de apreensão: sabia que tinha sido demasiado figurativo. Não demorei a comprovar tal intuição, porque meu, até agora, ouvinte amigo, resolveu observar:
-               Tudo bem... creio que entendi o que quis dizer. Entretanto, não daria para colocar isso de forma mais simples e objetiva?
Para ser sincero, não me lembro das exatas palavras pronunciadas pelo meu amigo, no entanto, carrego a lembrança do conteúdo desta indagação, porque tinha me adiantado as palavras, por conhecer a excessiva mania de simplificação do meu, agora indagador, amigo. Não tardei a lhe satisfazer:
-               Não fui muito claro? Ah... perdoe-me camarada. Deixe-me expressar de outra maneira. O que tentei dizer é que o homem possui, intrinsecamente, um amor que poderia ser chamado de infantil: ele sonha demais. Por ser munido de uma espécie de auto-segurança, sentimento esse pouco presente na mulher, transforma o que seria uma arma a ser utilizada numa ingênua falha de caráter: adquiri a pretensão de que se é possível conhecer uma mulher rapidamente! E é justamente essa pretensão, que soa mais a estupidez, que abre a porta para suas floridas e pérfidas idealizações. Porém, se a vida for generosa para com o homem e lhe colocar a vista uma mulher melhor que a atual, ele perderá, inevitavelmente, a sua infantilidade. Tornar-se-á maduro nas coisas do amor. Mas a sombra daquele tempo de entrega inconseqüente (infantil) o perseguirá para o resto da vida. Já a mulher parece fazer o caminho inverso. Ela começa com uma espécie de amor maduro, calculista, avaliando todos os prós e contras do homem, e, em determinado momento (talvez depois dos quarenta, como dizem) parece sentir uma insana necessidade de infantilizar esse amor, buscando desvairadas aventuras. Como se ela vivesse presa a um futuro ainda não vivido, negando, invariavelmente, aquele passado tempo de amor pensado.
-               Ah... então você está dizendo que o homem ama infantilmente até que o destino torne, contra sua vontade, esse amor maduro, e a mulher começa amando maduramente, sempre desejando que esse amor se infantilize?! Mas, se é isso: se o homem sempre está preso ao passado e a mulher ao futuro, quando eles viverão o presente juntos? Fui interrompido por essas pertinentes palavras do meu, agora dialogador, amigo. E continuei:
-               Esse é o nó górdio da questão, meu velho. Quem lhe disse que é possível viver um presente? Por que será que o exercício do amor é algo tão drasticamente equívoco para os seres humanos? Ah... deixemos disto: não percamos totalmente as esperanças. Vou dizer-lhe em qual dos encontros entre esses estágios do amor talvez seja possível obter algum êxito. Descartando os confusos momentos de transição entre amor infantil e maduro, creio que o melhor encontro dos gêneros dá-se entre o amor infantil do homem com o amor infantil da mulher. Explicar-me-ei descartando, primeiramente as outras hipóteses. Num encontro do amor infantil masculino com o amor maduro feminino, aliás o mais corriqueiro, o homem sonha demais e a mulher raciocina demais. Seria como esperar um entendimento entre um jovem poeta e uma recém-formada advogada. No encontro do amor maduro do homem com o infantil da mulher, acontece o mesmo, só se alteram os papéis. Já no encontro de ambos maduros, há muito raciocino e poucos sonhos, esse funciona enquanto os interesses forem comuns e só servirá para, no futuro, identificar interesses contrapostos. Mas pense bem, quando um homem que nunca amou, um homem que por isso sonha, encontra-se com uma mulher que já amou racionalmente, e agora quer e precisa sonhar, encontramos algo produtivo: o sonho ingênuo do homem é alimentado, propositadamente, pela pensada tentativa da mulher sonhar!
Quando finalmente cheguei ao ponto que queria, meu inconformado amigo deu um longo suspiro de desânimo como se tentasse expelir sua alma pela boca. Retesou-se na cadeira com um ar estóico e, para não fugir a uma conhecida mania sua, tentou resumir o que eu disse numa única frase:
-               Então você quer dizer que nossa única chance de felicidade, nessa busca dos amores possíveis, se dá quando uma mulher vivida se dispõe a nos iludir prematuramente?!
Encarei aquela indagação, que sabia ser mais uma conclusão a que ele chegara do que propriamente uma pergunta, com um despropositado dar de ombros. Sabia que ele iria radicalizar ainda mais a sua admirável capacidade de síntese – radicalizando de tabela os meus pensamentos –  que criaria uma daquelas frases de efeito que geram muitas polêmicas entre bons entendedores e muita antipatia com a maioria das pessoas. De repente, como que cansado de aguardar uma resposta, ele, meu resoluto amigo, disse em voz áspera, cortante, dir-se-ia um juiz pronunciando uma sentença:
-               O homem ama, dissimula a mulher.
Eu já agastado, entregue a uma suave melancolia, respondi-lhe:
-               Não seja tão trágico...
-               Mas não é essa a conclusão última e óbvia de tudo o que você disse?
-               Pode ser, meu velho, pode ser...



                                                                                    XXX
             FIM