Poemas de grandes autores 2

VINÍCIUS DE MORAES

 


O Haver

Resta, acima de tudo, essa capacidade de ternura
Essa intimidade perfeita com o silêncio
Resta essa voz íntima pedindo perdão por tudo:
— Perdoai! — eles não têm culpa de ter nascido...

Resta esse antigo respeito pela noite, esse falar baixo
Essa mão que tateia antes de ter, esse medo
De ferir tocando, essa forte mão de homem
Cheia de mansidão para com tudo quanto existe.

Resta essa imobilidade, essa economia de gestos
Essa inércia cada vez maior diante do Infinito
Essa gagueira infantil de quem quer balbuciar o inexprimível
Essa irredutível recusa à poesia não vivida.

Resta essa comunhão com os sons, esse sentimento
Da matéria em repouso, essa angústia de simultaneidade
Do tempo, essa lenta decomposição poética
Em busca de uma só vida, uma só morte, um só Vinicius.

Resta esse coração queimando como um círio
Numa catedral em ruínas, essa tristeza
Diante do cotidiano, ou essa súbita alegria
Ao ouvir na madrugada passos que se perdem sem memória...

Resta essa vontade de chorar diante da beleza
Essa cólera cega em face da injustiça e do mal-entendido
Essa imensa piedade de si mesmo, essa imensa
Piedade de sua inútil poesia e sua força inútil.

Resta esse sentimento da infância subitamente desentranhado
De pequenos absurdos, essa tola capacidade
De rir à toa, esse ridículo desejo de ser útil
E essa coragem de comprometer-se sem necessidade.

Resta essa distração, essa disponibilidade, essa vagueza
De quem sabe que tudo já foi como será no vir-a-ser
E ao mesmo tempo esse desejo de servir, essa
Contemporaneidade com o amanhã dos que não têm ontem nem hoje.

Resta essa faculdade incoercível de sonhar
E transfigurar a realidade, dentro dessa incapacidade
De aceitá-la tal como é, e essa visão
Ampla dos acontecimentos, e essa impressionante

E desnecessária presciência, e essa memória anterior
De mundos inexistentes, e esse heroísmo
Estático, e essa pequenina luz indecifrável
A que às vezes os poetas dão o nome de esperança.

Resta essa obstinação em não fugir do labirinto
Na busca desesperada de alguma porta quem sabe inexistente
E essa coragem indizível diante do Grande Medo
E ao mesmo tempo esse terrível medo de renascer dentro da treva.

Resta esse desejo de sentir-se igual a todos
De refletir-se em olhares sem curiosidade e sem história
Resta essa pobreza intrínseca, esse orgulho, essa vaidade
De não querer ser príncipe senão do próprio reino.

Resta essa fidelidade à mulher e ao seu tormento
Esse abandono sem remissão à sua voragem insaciável
Resta esse eterno morrer na cruz de seus braços
E esse eterno ressuscitar para ser recrucificado.

Resta esse diálogo cotidiano com a morte, esse fascínio
Pelo momento a vir, quando, emocionada
Ela virá me abrir a porta como uma velha amante
Sem saber que é a minha mais nova namorada.


VINÍCIUS DE MORAES













JORGE LUIS BORGES



O nosso

Amamos o que não conhecemos, o já perdido.
O bairro que já foi arredores
Os antigos que não nos decepcionaram mais
porque são mito e esplendor.

Os seis volumes de Schopenhauer que jamais terminamos de ler.
A saudade, não a leitura, da segunda parte do Quixote.
O oriente que, na verdade, não existe para o afegão, o persa ou o tártaro.
Os mais velhos com quem não conseguiríamos
conversar durante um quarto de hora.

As mutantes formas da memória, que está feita do esquecido.
Os idiomas que mal deciframos.
Um ou outro verso latino ou saxão que não é mais do que um hábito.
Os amigos que não podem faltar porque já morreram.
O ilimitado nome de Shakespeare.

A mulher que está a nosso lado e que é tão diversa.
O xadrez e a álgebra, que não sei.

 JORGE LUIS BORGES















PABLO NERUDA



O Menino Perdido

 

Lenta infância de onde
como de um pasto comprido
cresce o duro pistilo,
a madeira do homem.

Quem fui? O que fui? O que fomos?

Não há resposta. Passamos.
Não fomos. Éramos. Outros pés,
outras mãos, outros olhos.
Tudo foi mudando folha por folha
na árvore. E em ti? Mudou a tua pele,
o teu cabelo, a tua memória. Aquele não foste.

Aquele foi um menino que passou correndo
atrás  de um rio, de uma bicicleta,
e com o movimento
foi-se a tua vida com aquele minuto.
A falsa identidade seguiu os teus passos.
Dia a dia as horas se amarraram,
mas tu já  não foste, veio o outro ,
o outro tu, e o outro até que foste,
até que te arrancaste
do próprio passageiro,
do trem, dos vagões da vida,
da substituição, do caminhante.
A máscara do menino foi mudando,
emagreceu a sua condição enfermiça,
aquietou-se o seu volúvel poderio:
o esqueleto se manteve firme,
a construção do osso se manteve,
o sorriso,
o passo, o gesto voador, o eco
daquele menino nu
que saiu de um relâmpago,
mas foi o crescimento como um traje!
Era outro o homem e o levou emprestado.

Assim aconteceu comigo.

De silvestre
cheguei a cidade, a gás, a rostos cruéis
que mediram a minha luz e a minha estatura,
cheguei a mulheres que em mim se procuraram
como se a mim tivessem perdido,
e assim foi sucedendo
o homem impuro,
filho do filho puro,
até que nada foi como tinha sido,
e de repente apareceu no meu rosto
um rosto de estrangeiro
e era também eu mesmo:
era eu que crescia,
eras tu que crescias,
era tudo
e mudamos
e nunca mais soubemos quem éramos,
e ás vezes recordamos
aquele que viveu em nós
e lhe pedimos algo talvez que se recorde de nós,
que saiba pelo menos que fomos ele, que falamos
com a sua língua,
mas das horas consumidas
aquele nos olha e não nos reconhece.

PABLO NERUDA 














ERZA POUND

 



SAUDAÇÃO

Oh geração dos afetados consumados
          e consumadamente deslocados,
Tenho visto pescadores em piqueniques ao sol,
Tenho-os visto, com suas famílias mal-amanhadas,
Tenho visto seus sorrisos transbordantes de dentes
          e escutado seus risos desengraçados.
E eu sou mais feliz que vós,
E eles eram mais felizes do que eu;
E os peixes nadam no lago
          e não possuem nem o que vestir.





SAUDAÇÃO SEGUNDA

Fostes louvados, meus livros,
           porque eu acabara de chegar do interior;
Eu estava atrasado vinte anos
           e por isso encontrastes um público preparado.
Não vos renego,
           Não renegueis vossa progênie.


Aqui estão eles sem rebuscados artifícios,
Aqui estão eles sem nada de arcaico.
Observai a irritação geral:


"Então é isto", dizem eles, "o contra-senso
            que esperamos dos poetas?"
"Onde está o Pitoresco?"
            "Onde a vertigem da emoção?"
"Não ! O primeiro livro dele era melhor."
            "Pobre Coitado ! perdeu as ilusões."


Ide, pequenas canções nuas e impudentes,
Ide com um pé ligeiro !
(Ou com dois pés ligeiros, se quiserdes !)
Ide e dançai despudoradamente !
Ide com travessuras impertinentes !


Cumprimentai os graves, os indigestos,
Saudai-os pondo a língua para fora.
Aqui estão vossos guisos, vossos confetti.
Ide ! rejuvenescei as coisas !
Rejuvenescei até The Spectator.
          Ide com vaias e assobios !


Dançai a dança do phallus
          contai anedotas de Cibele !
Falai da conduta indecorosa dos Deuses !


Levantai as saias das pudicas,
          falai de seus joelhos e tornozelos.
Mas sobretudo, ide às pessoas práticas -
Dizei-lhes que não trabalhais
          e que viverei eternamente.



 ERZA POUND 

(traduções de Mário Faustino)



















OCTAVIO PAZ 





DESTINO DO POETA

Palavras? Sim. De ar
e perdidas no ar.
Deixa que eu me perca entre palavras,
deixa que eu seja o ar entre esses lábios,
um sopro erramundo sem contornos,
breve aroma que no ar se desvanece.
Também a luz em si mesma se perde.
  
(Tradução Haroldo de Campos)



Conversar

Em um poema leio:
Conversar é divino.
Mas os deuses não falam:
fazem, desfazem mundos
enquanto os homens falam.
Os deuses, sem palavras,
jogam jogos terríveis.


O espírito baixa
e desata as línguas
mas não diz palavra:
diz luz. A linguagem
pelo deus acesa,
é uma profecia
de chamas e um desplume
de sílabas queimadas:
cinza sem sentido.


A palavra do homem
é filha da morte.
Falamos porque somos
mortais: as palavras
não são signos, são anos.
Ao dizer o que dizem
os nomes que dizemos
dizem tempo: nos dizem,
somos nomes do tempo.
Conversar é humano.


(Tradução Antônio Moura)


IRMANDADE

Sou homem: duro pouco
e é enorme a noite.
Mas olho para cima:
as estrelas escrevem.
Sem entender compreendo:
Também sou escritura
e neste mesmo instante
alguém me soletra.


(Tradução Antônio Moura)


OCTAVIO PAZ



















SYLVIA PLATH 




PALAVRAS 

Golpes
De machado na madeira,
E os ecos!
Ecos que partem
A galope.


A seiva
Jorra como pranto, como
Água lutando
Para repor seu espelho
Sobre a rocha


Que cai e rola,
Crânio branco
Comido pelas ervas.
Anos depois, na estrada,
Encontro


Essas palavras secas e sem rédeas,
Bater de cascos incansável.
Enquanto do fundo do poço, estrelas fixas
Decidem uma vida.


SYLVIA PLATH

(tradução de Ana Cristina César)
































PAUL CELAN







CRISTAL

Não procura nos meus lábios tua boca,
não diante da porta o forasteiro,
não no olho a lágrima.   


Sete noites acima caminha o vermelho ao vermelho,
sete corações abaixo bate a mão à porta,
sete rosas mais tarde rumoreja a fonte.


( tradução: Claudia Cavalcanti )




QUANDO ME ABANDONEI EM TI,  
eras pensamento,
  

algo  
murmura entre nós dois:
 
do mundo a primeira
 
das últimas
 
asas,


em mim cresce  
a pele sobre 
 
tempestuosa
 
boca,
  tu não chegas até ti.

( tradução: Claudia Cavalcanti )  




COMO TE EXTINGUES em mim:  

ainda no último  
e gasto
 
nó de ar
 
estás lá com uma
 
faísca
 
de vida.
  

 ( tradução: Claudia Cavalcanti )



PAUL CELAN
    

































 SIERGUÉI IESSIÊNIN

A confissão de um vagabundo



Nem todos sabem cantar,
Não é dado a todos ser maçã
Para cair aos pés dos outros.


Esta é a maior confissão
Que jamais fez um vagabundo.


Não é à toa que eu ando despenteado,
Cabeça como lâmpada de querosene sobre os ombros.
Me agrada iluminar na escuridão
O outono sem folhas de vossas almas,
Me agrada, quando as pedras nos insultos
Voam sobre mim, granizo vomitado pelo vento.
Então, limito-me a apertar mais com as mãos
A bolha oscilante dos cabelos.


Como eu me lembro bem então
Do lago cheio de erva e do som rouco do amieiro,
E que nalgum lugar vivem meu pai e minha mãe,
Que pouco se importam com meus versos,
Que me amam como a um campo, como a um corpo,
Eles, com seus forcados, viriam aferrar-vos
A cada injúria lançada contra mim.


Pobres, pobres camponeses,
Por certo, estão velhos e feios,
E ainda temem a Deus e aos espíritos do pântano.
Ah, se pudessem compreender
Que o seu filho é, em toda a Rússia,
O melhor poeta!
Seus corações não temiam por ele
Quando molhava os pés nos charcos outonais?
Agora ele anda de cartola
E sapatos de verniz.


Mas sobrevive nele o antigo fogo
De aldeão travesso.
A cada vaca, no letreiro dos açougues,
Ele saúda à distância.
E quando cruza com um coche numa praça,
Lembrando o odor de esterco dos campos nativos,
Lhe dá vontade de suster o rabo dos cavalos
Como a cauda de um vestido de noiva.


Amo a terra.
Amo demais minha terra!
Embora a entristeça o mofo dos salgueiros,
Me agradam os focinhos sujos dos porcos
E, no silêncio das noites, a voz alta dos sapos.
Fico doente de ternura com as recordações da infância.
Sonho com a névoa e a umidade das tardes de abril,
Quando o nosso bordo se acocorava
Para aquecer os ossos no ocaso.
Ah, quantos ovos dos ninhos das gralhas,
Trepando nos seus galhos, não roubei!
Será ainda o mesmo, com a copa verde?
Sua casca será rija como antes?

E tu, meu caro
E fiel cachorro malhado?!
A velhice te fez cego e resmungão.
Cauda caída, vagueias no quintal,
Teu faro não distingue o estábulo da casa.
Como recordo as nossas travessuras,
Quando eu furtava o pão de minha mãe
E o mordíamos, um de cada vez,
Sem nojo um do outro.


Sou sempre o mesmo.
Meu coração é sempre o mesmo.
Com as centáureas no trigo, florem no rosto os olhos.
Estendendo as esteiras douradas de meus versos
Quero falar-vos com ternura.


Boa noite!
Boa noite a todos!
Terminou de soar na relva a foice do crepúsculo...
Eu sinto hoje uma vontade louca
De mijar, da janela, para a lua.

Luz azul, luz tão azul!
Com tanto azul, até morrer é zero.
Que importa que eu tenha ar de um cínico
Que pendurou uma lanterna no traseiro!
Velho, bravo Pégaso exausto,
De que me serve o teu trote delicado?
Eu vim, um mestre rigoroso,
Para cantar e celebrar os ratos.
Minha cabeça, como agosto,
Verte o vinho espumante dos cabelos.


Eu quero ser a vela amarela
Rumo ao país para o qual navegamos.

SIERGUÉI IESSIÊNIN
 1920

(Tradução de Augusto de Campos) 

























 FLORBELA ESPANCA






Os versos que te fiz

Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que a minha boca tem pra te dizer !
São talhados em mármore de Paros
Cinzelados por mim pra te oferecer.

Têm dolência de veludos caros,
São como sedas pálidas a arder ...
Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que foram feitos pra te endoidecer !

Mas, meu Amor, eu não tos digo ainda ...
Que a boca da mulher é sempre linda
Se dentro guarda um verso que não diz !

Amo-te tanto ! E nunca te beijei ...
E nesse beijo, Amor, que eu te não dei
Guardo os versos mais lindos que te fiz!

Amar!

Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: Aqui...além...
Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente
Amar!Amar!E não amar ninguém!

Recordar?Esquecer?Indiferente!...
Prender ou desprender?É mal?É bem?
Quem disser que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente!

Há uma Primavera em cada vida:
É preciso cantá-la assim florida,
Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!

E se um dia hei-de ser pó,cinza e nada
Que seja a minha noite uma alvorada,
Que me saiba perder... pra me encontrar..


 FLORBELA ESPANCA









GUILHERME DE ALMEIDA



 



AMOR, FELICIDADE

Infeliz de quem passa pelo mundo
procurando no amor felicidade!
A mais linda ilusão dura um segundo,
e dura a vida inteira uma saudade.

Taça repleta, o amor, no mais profundo
íntimo, esconde a jóia da verdade:
só depois de vazia mostra o fundo,
só depois de embriagar a mocidade…

Ah! quanto namorado descontente,
escutando a palavra confidente
que o coração murmura e a voz não diz,

percebe que, afinal, por seu pecado,
tanto lhe falta para ser amado,
quanto lhe basta para ser feliz!



CUIDADO!

Ó namorados que passais, sonhando,
quando voga, no céu, a lua cheia!
Que andais traçando corações na areia
e corações nos peitos apagando!

Desperta os ninhos vosso passo… E quando
pelas bocas em flor o amor chilreia,
nem sei se é o vosso beijo que gorjeia,
se são as aves que se vão beijando…

Mais cuidado! Não vá vossa alegria
afligir tanta gente que seria
feliz sem nunca vos ouvir nem ver!

Poupai a ingenuidade delicada
dos que amaram sem nunca dizer nada,
dos que foram amados sem saber!



SUAVE COLHEITA

Que te entristece, coração velhinho?
Olha atrás o passado: que mais queres?
Quantos sonhos e quantos malmequeres
desfolhados ao longo do caminho!

Tantas rosas colheste! E hoje, sozinho,
por que estranhas o espinho em que te feres?
Como as rosas são todas as mulheres:
quem colhe a rosa também colhe o espinho…

Feliz, que te iludiste! Os teus amores,
de que andaste, insaciável, aspirando
o perfume sutil de um só minuto,

foram apenas como certas flores
que a gente colhe, de manhã, pensando
que são belas demais para dar fruto!




GUILHERME DE ALMEIDA








LAURA RIDING






ORGULHO DA CABEÇA


Fosse encaixada em outra parte e não assim,
Girando em seu soquete privado e preciso
Como sol encaixado numa junta da montanha...
Mas, aqui, inclinando e soprando em meu pescoço,
Sem precedente na natura
Nem nas belezas da arquitetura,
Esvoaçando meu cabelo como um campo de milho,
Semeada ao acaso num canto esquecido da colina,
Minha cabeça está no topo de mim
Onde vivo mais e a maior parte do tempo,
Onde minha face lança um olhar introspectivo
Para o que está fora de mim,
E encara o desafio de outras coisas
Com desdém, por ser o que é.

Deste lugar de honra, gema
Do continente maior e preguiçoso bem abaixo,
Eu, ídola da cabeça,
Uma autocrata sentada, cruzando minhas intenções,
Olho e me preocupo com o resto com bondade,
Despacho os riachos de sentido para baixo
Para que explorem a selvagem terra semidesperta,
Tremendo continente desta ilha mínima,
E a civilizem o melhor que possam.

LAURA RIDING