segunda-feira, 28 de março de 2011

Manifesto



Esse é o movimento de um homem só. Portanto, não seria propriamente um “movimento” no sentido político-literário (odeio essas palavras forçosamente associadas, como aliás tem sido a séculos, na teoria ou na prática). Seria mais um homem só, movimentando-se. Em todo caso responsável por responder sobre o escrito, se lhe der na telha.
Fukuyama decretou o “Fim da história!” (leia-se socialismo) no começo da década de 1990. Não tardou e ao seu reboque vieram artistas – muitos ex-vanguardistas, entre eles o nosso caro Gullar – e decretaram: é o “Fim das Vanguardas!” É o fim dos movimentos! É o fim de tudo! Então por que na virada do milênio o apocalipse não vingou? Por que ainda estamos aqui suportando esse maldito fardo de existir, e pior, potencializado pelo mais maldito possessivo delirante fardo de criar?
Contudo sou obrigado a concordar inteiramente com Gullar: é o fim das vanguardas! “Vanguarda, do francês avant-garde: parte de tropas que vão à frente, os primeiros atacantes, parte avançada do exercito, frente.” Reparem que os escritores (e artistas em geral) de fins do século dezenove e primeira metade do século vinte (a listar, quase todos os “istas”: impressionistas, futuristas, dadaístas, expressionistas, surrealistas, modernistas, ultraístas, criacionistas, concretistas e neoconcretistas, beatniks, ops, eram só “istas”, tudo bem, com certeza esqueci-me de alguns), pegaram o termo de algum almanaque militar. Eram soldados, combatentes, guerreavam por algo que acreditavam ser melhor, novo, para as artes e os homens, por isso discutiam, debatiam, discordavam e criavam deveras coisas novas. Estavam à frente das questões. Realmente: acabou-se há tempos as vanguardas! Já não estamos (refiro-me ao meu eu e seu duplo) à frente nem das nossas próprias vidas, nem de nós mesmos!
Por isso inauguro esse movimento individual-político-artístico-literário (vixe, quanta palavra antiga, ultrapassada, fora de moda, juntas, credo, benzem-me!) pegando emprestado seu antônimo: retaguarda. E notem como é interessante – pra não dizer tragicômico – o significado dessa palavra no dicionário do nosso saudoso Silveira Bueno:
Retaguarda: s.f. A parte traseira de um exército, o ultimo esquadrão, parte oposta a vanguarda. A formação normal deve ter sido retroguarda, a guarda, a defesa de trás. Ouve dissimulação da vibrante r, retoguarda. O gen. fem. de guarda levou o primeiro elemento a concordar com ele: retaguarda.”
Nesse atual estado que nos encontramos, Deus nos permita sermos, pelo menos, a retaguarda de algo. Por favor, ó misericordioso, permita-me, eu, esse ateu-pecador, estar na defesa de algo! (em troca rezo dez pais-nosso e cinco ave-marias!).
Mas mantive o original “retro”(atrás) visto que está na moda ser “retrô”, ouvir o rock dos 80, vestir roupas coloridas e até o LP voltou a circular...
Estou possesso, queria frases curtas à la Marinete nos seus manifestos ou Apollinaire... mas vamos lá.
Fim das vanguardas!” de todos os tipos, políticas ou artísticas... as políticas eu não lamento. Agora as artísticas: não podemos mais juntar meia dúzia de notívagos boêmios metidos a poetas e escritores e escrever um divertido manifesto contra outros ébrios ou contra indivíduos diurnos e sóbrios! Que chato isso! O mundo está cada vez mais retrógrado! Por isso surge esse movimento da retroguarda! Retrógrado merece a retroguarda! Já que aceitamos a bestialização mercantil do homem, a individualização sem individualidade, as relações virtuais acima das reais, aceitamos nossa posição da retroguarda. E viva o movimento da retroguarda!
Já que as artes são controladas por empresas e empresários que nunca leram Dante, quão dantesco é nosso cenário! Ou o Estado com seu tardio “estado de bem-estar social” nas nossas terras (só demoramos 500 anos depois de massacrarmos uma de nossas origens e fonte cultural), o Estado de inserção sócio-econômico-político-cultural (êta monstro de quatro cabeças) com sua política de “compensação história” nas artes e, principalmente, na literatura! Estamos fodidos mesmo! Hoje em dia querer fazer literatura de qualidade é uma tarefa homérica, com pitacos quixotescos e resultados hameltianos! E viva a retroguarda!
Todavia, se estamos atrás das vanguardas de mais de cem anos atrás, pergunto-me: onde estamos? Na retroguarda! Então somos a retroguarda da vanguarda! Viva as vanguardas européias e latino-americanas do passado! Sem elas nós não existiríamos, mesmo com mais de cem anos de atraso! Ou foram eles (os artistas do passado) que se adiantaram demasiadamente no tempo?
Ouvindo o Anel de Nibelungo – se me chamarem de anti-semita ou nazista perco a compostura e meto a mãe no meio – sinto que estamos vivos, quer dizer, um pouco atemporais do nosso próprio tempo, pisando em nuvens que se foram a muito e falando com uma merda de aparelho eletrônico (o computador) como se fosse gente! Por isso, viva a retroguarda!
Viva tudo aquilo que poderíamos ser e não somos!
Façamos uma literatura para compensar nossos infortúnios! Forma na arte? Discussão estética na composição? Técnica de escrita? Pra que se preocupar com isso? Façamos arte em nome dos necessitados mesmo que não o sejamos, mas façamos uma literatura que creia nos bons costumes, não fume, não beba, seja gente boa e vá à igreja, amém! Viva a retroguarda!
Façamos uma literatura como se fosse diários de adolescentes, daqueles que temos vergonha de ler alguns anos depois por serem tão mal escritos! Façamos uma literatura popular e de fácil leitura!
Ou façamos uma literatura sobrenatural, mística (jamais mítica, isso é perigoso!), mal escrita e de fácil compreensão e de nenhuma reflexão! Viva a retroguarda!
Ou façamos ainda uma literatura de auto-ajuda, rentável para as editoras, ensinemos o pecador a não pecar, o usurário a se arrepender, o mão-de-vaca a dar sua mão para os famintos a comerem, fácil digestão! Viva a retroguarda!
Ou narremos as faces escuras da ditadura, com tom melancólico e triste, nunca muito raivoso (isso não é aconselhável), mas jamais citemos os nomes de torturadores para não os comprometer, em nome da Anistia de 79 e da unidade nacional! Viva a retroguarda!
Falar de amor a quem se ama ou criticar o seu país de forma irônica, não, isso nunca, e se for com forma estética fixa, um soneto italiano, por exemplo, em decassílabos heróicos ou sáficos... jamais, coisa de dr., burguês, metido e elitista! O povo não compreenderá! Mas será que os artistas ainda não notaram que toda arte desde as vanguardas é – essencialmente – antipopular?! Viva a retroguarda!
(....agora não entendo como Maiakovski, com seu cubo-futurismo de aço, seus hipérbatos, aliterações, rimas internas, metáforas inusitadas, ironia refinada e brutal, era entendido – no único sentido que a poesia almeja ser entendida, isto é, sentida, admirada, amada – por operários, camponeses, marinheiros, todos combatentes e duros, há quase cem anos!Pergunta inconveniente, seja politicamente correto, rapaz. Até porque Maiakovski e Iessiênin se mataram, vanguardistas comunistas suicidas! Nós estamos vivos e sadios e não nos incomodamos com nada além dos nossos próprios calos! E viva a retroguarda!....)
Quero recitar poesia fumando no boteco: não pode, Lei Anti-fumo! Retroguarda!
Quero recitar versos no boteco as quatro da madrugada, alto e em bom som, para bêbados e putas e vadios e desocupados, não pode, Lei do Psiu! Retroguarda!
Quero comer carne gordurosa, beber vinho barato (não quero saber o nome da uva, cabernet sauvignon, ser chique), fumar cigarro, não pode, olha sua saúde, nós cuidaremos dela caso você mesmo não cuide! Retroguarda!
Quero ser socialista, anarquista, comunista! Pregar a revolução! Vixe, fora de moda, o papo hoje é Lady Gaga, Restart, a vida dos famosos e comprar, comprar, comprar! Retroguarda!
Não vou propor nenhum tema e técnicas novas! Retroguarda! Mas vou propor algo mais extraordinário e que está na moda: já que os bons artistas entraram em extinção, preservemos os artistas idiotas ou os idiotas que pensam ser artistas, como eu! Retroguarda!
Quer saber, o negócio é sairmos da frente desses computadores, juntarmos meia dúzia de malucos e discutirmos como fazer literatura para essa nossa vida, retroguarda, ou então, mandar tudo isso a merda e, simplesmente, vivermos! Sem possessões, crises, noites em claro, dores de cabeças, leituras extasiantes e bebedeiras! Retroguarda! A vida já tem suas próprias obras-primas, sem arte! Retroguarda!
Agora é nossa vez! Obviamente atrás de vocês, vanguardistas do século passado! Afinal, somos o movimento da retroguarda!


Suzano, 22 de março de 2011.