A crônica na nossa língua portuguesa nasceu na Idade Média para relatar
a vida dos reis. Em assuntos dinásticos e de autoridades sou robespierriano.
Toda pomposidade sempre me enerva, como quase tudo que advém de privilégios e
de família. A partir do século XIX passou a narrar coisas da vida vivida,
duras, reais. A realidade crua e nua também me enerva, como esse frio imoral e
o capitalismo. No século XX tudo melhorou, porque muitas escritoras e
escritores fizeram da crônica para jornais e revistas seu ganha pão ou
complemento de renda. Viver escrevendo poemas, contos e romances é tarefa
ingrata no Brasil, excetuando, logicamente, a literatura de má qualidade. Os
escritores e as escritoras de então transformaram a crônica em uma espécie de
crônica literária. A lista é enorme e rica, mas citarei apenas dois cronistas
de profissão, que servem para o propósito do que direi a seguir: Rubem Braga e
Paulo Mendes de Campos. O primeiro é de uma beleza estonteantemente simples,
sensitiva e palpável, imagem poética do que fazemos e do que nos cerca. Diria
um poeta cronista. Recomendo a crônica “Como se fora um coração postiço” como
exemplo. O segundo é de uma agudeza deliberadamente filosófica, introspectiva e
etérea, narração poética do que sentimos e do que criamos. Diria um contista
cronista. Recomendo a crônica “Para Maria das Graças” como exemplo. Vós,
críticos de plantão, direis: que reducionismo vulgar e tendencioso! Ora,
primeiro não ignoro a diversidade do que ambos escreveram (só o “Velho” Braga
escreveu mais de 15.000 crônicas!); segundo que não considero vulgar uma
ofensa, já que venho do vulgo e a ele pertenço; e, por último, vos informo: a
muito me livrei desta dubiedade cristã do bem contra o mal ou do bom contra o
mau e da vossa confortante ilusão de imparcialidade!
Como dito um pouco mais acima, tenho meus propósitos e a eles
tenderei, como a vida tende a morte e a arma ao assassino. Como em alguns
momentos sou uma vã tentativa de ser poeta (aliás, todo poema é de um momento)
e em outros de um contista desregrado, preciso encontrar um ponto de equilíbrio
entre aquilo que não desejo mas preciso escrever, os poemas, e aquilo que
desejo mas não consigo, os contos. E é aí que entra a crônica. Já que quero me
regrar um pouco, mas não muito. Regras demais sempre me enervam, como sentenças
judiciais tediosas e injustas.
Vós, os mais rigorosos, direis: mas se você criar algo que não parta do
real, usar dos artifícios da literatura para as crônicas, já não serão mais
crônicas! Ah é? Então me respondeis: será mesmo que todas as crônicas do
Drummond ou do Veríssimo nasceram de algo que eles viveram ou vivenciaram? O
que considerais ser “do cotidiano” é dos vossos cotidianos rasos, calculistas e
infrutíferos ou dos cotidianos profundos, livres e imaginativos como de um
Cortázar ou Twain? Perdoai-me a comparação, já que todo crítico (com raríssimas
exceções) é um escritor que não deu certo.
Mesmo assim, prometo que serei o mais fiel possível ao gênero, dentro
das minhas limitadíssimas capacidades.
De antemão peço mil perdões aos céticos e aos mentirosos, garantindo
desde já que não lhes farei concorrência.
Aos que me tem algum apreço e carinho, obrigado, e levem esses
sentimentos em consideração ao lerem as crônicas.
Aos demais, não importa. E também que importância tem o que me enerva ou
tudo isso para alguém?
O destino e a simultaneidade das vidas
Sou ateu. Não àtoa, como já fui outrora, quando era menino e
ao me ajoelhar em missas de igrejas católicas murmurava para minha mãe: “Meu
joelho tá doendo, mãe”. Ou no dia em que tinha seis ou sete anos e ela me deu
um pedaço de hóstia e perguntei: “Mãe, por que tenho que comer papelão?”.
Resumindo a ópera: era àtoa porque nunca senti deus. E assim cresci, li sobre a
história das religiões, de diversos povos e suas culturas, tornei-me marxista,
mais precisamente um socialista libertário, e virei um ateu convicto.
Todavia, a ideia de destino sempre me intrigou, sempre me
deixou uma pulga atrás da orelha, porque, mesmo sem deus, sentia algo dentro de
mim que era mais forte que a razão, que mesmo o acúmulo intelectual e as
leituras e os diálogos e debates não anularam. Era algo como uma
inevitabilidade daquilo que era e devia fazer, daquilo que sentia e não era
recalque, daquilo que me levaria mais perto de saber quem eu era e o que
deveria fazer neste estranho mundo.
Quando li Sócrates com 15 anos, ou melhor, conheci Sócrates
através de Platão, achei que tinha um dâimon dentro de mim. E era ele que me
sussurava quando tomava minhas decisões, quando tinha que dizer ou escolher
algo. Mas, conheci Epicuro, a dialética, posteriormente, Bacon, Espinosa,
Descartes, Kant, Hegel e muitos outros filósofos num curto espaço de tempo e
perdi toda certeza. Os poetas e as poetas sempre me serviram como atalhos para
o conhecimento e quando descobri que para Freud também, achei que estava no
caminho de entender o porquê de certas escolhas. Mas me decepcionei, porque
ainda não chegava a uma conclusão satisfatória, não me entendia, não conseguia
ver o fio da meada da minha própria vida.
Até que um dia li “Servidão Humana” do Maugham (depois de ter
lido “O Fio da Navalha” e diversos livros de contos dele). E duas impressões
(que, posteriormente, entendi não serem dele, mas de outros filósofos) me
marcaram profundamente (tinha eu 16 anos): a ideia de um destino que vai se
tecendo a partir das nossas próprias escolhas e de imaginar a simultaneidade
daquilo que não fizemos da nossa vida, daquilo que não foi vivido, daquilo que
poderíamos ter feito.
Obviamente, existe um paradoxo inconciliável entre essas duas
ideias ou sensações em mim: porque se há destino, não podem haver outras
possibilidades alternativas e o contrário também vale, porque se podíamos ter
outras (ou qualquer) opção, não há destino. E vivo, sem desejar ou entender,
completamente, o motivo desse eterno paradaxo.
Por exemplo, hoje me veio a memória o dia em que uma mulher
bela e sensível me mostrou o poema do e.e.cummings “nalgum lugar”, que ela
conhecia por conta da sua musicalização que o Zeca Baleiro fez, e eu apesar de
ter ouvido muito o Baleiro, desconhecia o poeta, que posteriormente, se tornou
referência em meus rabiscos (tinha eu dezoito ou dezenove anos na
ocasião). E junto com tal lembrança do
momento citado vieram, como que automaticamente, flashes do que teria sido
minha vida com esta mulher: e foram devaneios não vividos tão vívidos, belos,
excitantes, contagiantes e plenos, que pareceram naquele instante tão reais,
que senti uma tristeza incomensurável de não os ter sentidos, provados,
vividos.
Ou outra lembrança repentina que tive a alguns dias, de um
outro encontro com outra mulher, dessa vez com uma daquelas pessoas raras que
parecem conhecer nossa alma, nosso duplo e que por motivos outros também não
foram vividos (ditos morais idiotas que as vezes nos dominam) e que de repente
vieram lembranças do que não existiu, mas tão intensas e lindas e únicas, que
pareciam mais reais que outras realmente vividas.
Mas, involuntariamente, retorna em mim a ideia do destino,
daquilo que optei e não deu certo, daquilo que fiz e que me trouxe até aqui. E esse
real duro, triste, solitário, inconcluso me parece confirmar o que Maugham
narrou: nossa vida é uma contínua junção das nossas decisões, escolhas, tomadas
de partidos, e, na maioria das vezes, são escolhas inconscientes, inevitáveis,
porque vão de encontro ao que somos e, portanto, ao que devemos viver, mesmo
que não saibamos disso.
E ficam todas as possíveis vidas que não tivemos, e elas
parecem que seriam tão belas, pelos caminho dos nossos erros ou destinos, das nossas
sempre incompletas, limitadas, medíocres e tristes vidas…
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