Ensaios sobre Literatura

Nessa página serão postados ensaios (e outros textos) de diversos autores sobre literatura. Ensaios estes que me marcaram e me levaram - intensamente - a refletir sobre o "ato de escrever". Espero que sirvam, também, para reflexões de outros. E, acima de tudo, façam com que as sementes da criação literária germinem fecunda e loucamente...















SADE: A SOLIDÃO PÚBLICA

Numa conferência a que deu o título de A Solidão Pública, o poeta beat norte-americano Allem Ginsberg afirmava que “as necessidades políticas da América são as seguintes: orgias nos parques, na Grande Praça de Boston e nos jardins públicos, com bacantes nuas em todas as nossas  florestas nacionais”. Suas palavras foram procuradas  no azul-cinzento do Nirvana, no paraíso da marijuana, do peyotl, no “admirável mundo novo” do LSD. Depuradas pelas drogas das quais o poeta se apresenta como ardoroso defensor, elas eletrizaram uma platéia de norte-americanos aflitos e ansiosos por um way of life menos repressivo – pelo menos na escala sexual. A verdade pura e simples, no entanto, é que se os eletrizados norte-americanos, se tivessem a Escola da Libertinagem, não teriam se mostrado tão impressionados com as palavras do seu poeta.
Sartre disse de Baudelaire: Não teve a vida que merecia. Tivesse sido escrita antes, e essa frase seria ideal para o epitáfio do Marquês de Sade. Donatien-Aldonse-François, o Marquês, travou durante toda a sua vida uma terrível luta contra o mundo que lhe era imposto pelos seus semelhantes. E que ele via mau, cruel, inconsequente. Contrariando o próprio Baudelaire, que alguns anos depois dele morto diria, “o estudo do belo é um duelo em que o artista grita de pavor antes de ser vencido”, Sade não procurou retirar de suas relações com o mundo o Belo a que iriam se referir todos os escritores do Século XIX – surgidos depois dele. Antes, preocupou-se com o feio, o sujo, o abjeto, fez do mal a sua ética e em torno deste erigiu todo um complexo ético do qual alimentou sua vã filosofia. Talvez por isso, neste século em que suas obras permaneceram ignoradas, tenha brotado uma literatura tão alheia à sua. E só no nosso século, o XX, de repente o Marquês explodiria em mil estilhaçosfacilmente identificáveis por toda a obra de nossos poetas cristãos ocidentais.
Abrem-se as portas do nosso tempo: Há uma grande guerra e a ânsia geral de transformação. Se é verdade que o mundo cresceu, multiplicou-se, não se pode negar, também, ter ele crescido e se multiplicado calcado em bases falsas. Enquanto ele crescia, algo apodrecia aos seus pés. Nos subterrâneos, escondido na própria sombra do homem aparentemente maior, Lúcifer arregimentava seus Exércitos. Estava próxima uma batalha, a última, e o homem, cada vez mais alto, nem sequer daria por ela. Haveria um momento em que ele ainda poderia vencê-la. Mas se esse momento passasse, a derrota seria irreversível, não haveria salvação. E ele estaria para sempre mergulhado nas trevas do seu infinito. Sade, sua fúria, seu som, renasceu aqui.
Em 27 de janeiro de 1925, os surrealistas: “Somos especialistas da revolta… O surrealismo não é uma forma poética. É um grito do espírito que se volta sobre si próprio e que está decidido a quebrar desesperadamente tudo que lhe seja um estôrvo”. Em suma, a explorar, a buscar aquela parte inexplorada do homem, a que ele soterrara sob os detritos do remorso e o medo do mal. Esse lado do homem eternamente na sombra, só um poeta ousara explorar – e quão caro pagara por isso –, este Sade. E por isso, do esquecimento a que o haviam relegado, das masmorras e das sombrias e mofadas coleções e bibliotecas onde haviam sido esquecidos os seus terríveis manuscritos, foram os poetas do nosso tempo retirá-lo para fazer dele o seu absoluto precursor:
“Sim, boa gente, sou eu que vos ordeno que queimeis numa pá, aquecida ao rubro, com um pouco de açúcar amarelo, o pato da dúvida, de lábios de vermute que, espalhando, numa luta melancólica contra o bem e contra o mal, lágrimas que não vem do coração, cria, sem máquina pneumática, o vazio universal. É o melhor que tem a fazer”.
Porque Sade era nosso e não do seu tempo. Nem mesmo a Revolução Francesa, com a frieza metálica da lâmina de sua guilhotina, poderia merecê-lo. E que dizer de Napoleão, depois, o frio assassino, símbolo exato de tudo o que no homem Sade mais detestava, e sob cujo império o Marquês, em Charenton, começaria a morrer? Porque a ele o que interessava era que o homem sobrevivesse, e – ante a hipocrisia do seu tempo, ele já sabia que essa sobrevivência só poderia ser obtida à custa de uma exploração desesperada para dentro de si mesmo, em busca de uma origem perdida não se sabe em que encruzilhada, não se sabe em que relâmpago ou em que momento de fraqueza mística, menos pagã. E já quando o mundo tinha curtos os seus limites, e quando do resto se sabia apenas as lendas que chegavam até a Europa, Sade pressentia um perigo que atravessaria latente todo um século até precipitar-se no nosso.
Aí está o Século XX, temos a máquina. Alguém já disse que nossas universidades estão se preocupando em formar “imbecis especializados. O homem sabe cada vez menos de si próprio. E quando se diz faça-se o amor, e não a guerra, o que ainda restar de Sade na natureza que ele tanto observou certamente estremecerá: porque o Marquês já sabia que nós só triunfaríamos se fizéssemos a GUERRA, a última, aquela da qual sairemos definitivamente vencedores ou perdedores, mas que será terrível, e rápida, e cuja lâmina fenderá o espaço sem que ao menos percebamos.
Por ter vivido um século adiante de nós, Sade só agora começa a ser compreendido. O interesse por sua obra é geral, as edições dos seus livros se sucedem no mundo inteiro. Nesse Filosofia na Alcova leremos suas teses melhor explanadas, provavelmente, que em qualquer outro dos seus livros. Citemos a Beauvoir, no seu magistral ensaio Deve-se Queimar Sade? :
“É republicano, e teoricamente exige mesmo um socialismo integral e a abolição da propriedade: mas empenha-se em conservar o seu solar e as suas terras; esse mundo a que tenta adaptar-se é ainda um mundo demasiado real, cujas brutais resistências o ferem; e é um mundo regido por essas leis universais que ele considera abstratas, falsas e injustas; quando em nome delas a sociedade se permite o assassínio, o marquês retira-se com horror. Compreende-o muito mal quem se admira de que, em vez de solicitar um posto de comissário do povo na província, que lhe permitiria torturar e matar, ele se tenha desacreditado pelo humanismo; supor-se-á que “amava o sangue” como se ama a montanha e o mar? “Derramar sangue” era um ato cuja significação podia, em certas circunstâncias, ser para ele sublime; mas o que sobretudo pedia à crueldade era que ela lhe revelasse como consciência e liberdade, ao mesmo tempo que como carne, indivíduos singulares e sua própria existência; julgar, condenar, ver morrer a distância pessoas anônimas, a isto se recusa. O que ele mais odiou na velha sociedade foi a pretensão desta, e da qual ele foi vítima, de julgar e punir: de modo algum poderia desculpar o Terror”.
E nós voltamos a uma época em que a guilhotina, mecânica, fria, ceifa tranquilamente a cabeça dos cidadãos. Por todos os lados o cheiro podre do sangue é abafado com o significado inexato das palavras, das frases. E nós todos participamos de um monstruoso crime coletivo, fazemos parte de uma vasta sociedade de criminosos. Foi dessa perda da individualidade para o mal de que Sade foi um profeta, como o são, ainda hoje os poetas que se recusam ao isolacionismo de uma linguagem críptica, cifrada, e ainda acenam desesperadamente em nossa direção com a bandeira vermelha do mal. Numa sociedade criminosa, é preciso ser criminoso, declarava o Marquês, e para explicá-lo melhor, mostrando, ao mesmo tempo, a posição que devemos ocupar em relação aos crimes de nossa era, voltemos a citar a Beauvoir:
“Pelo crime, o libertino recusa toda a cumplicidade com as torpezas do dado, de que a massa é apenas o reflexo passivo, portanto abjeto; ele impede a sociedade de adormecer na injustiça e cria um estado apocalíptico que obriga todos os indivíduos a assumir, numa tensão incessante, a sua separação e, portanto, a própria verdade”.
Eis porque, ao recusarmos a virtude, reconhecendo o mal como um parte do homem – porque este, ao separar-se em Bem e Mal, deixou de ser um só para não conseguir ser dois – passamos ao lado em que formam os poetas e os criminosos, e só desses podemos esperar uma redenção, porque são eles os que sustentam a guerra contra o amor – e por isso os que pedem o amor contra a guerra são tão promovidos por nossa sociedade virtuosa, que, enquanto isso, condena os poetas e os criminosos, humilha-os e procura sepultá-los na ignorância precisa de suas máquinas; eis porque, ao lado dos poetas e dos criminosos, devemos travar a última e mais violenta das guerras contra a ordem estabelecida, estabelecendo a nossa própria ordem, essa em que não existirá Bem ou Mal, e portanto, nem a virtude do vício ou o vício da virtude, mas sim, o Homem, dono de si, senhor do mundo. Donatien-Aldonse-François, nesta guerra surda, será o nosso profeta. Ao lado dele caminharemos, basta ler esse livro e saberemos porquê. Estamos na encruzilhada, aquela que ele anteviu das trevas do seu século. Para continuar falando de profetas, basta citar Henry Miller, um dos que, em nosso tempo, se preocuparam com esse tipo de poesia:
“Agora que conseguimos decompor o átomo, o cosmos está escancarado. Agora olhamos em todas as direções ao mesmo tempo. Chegamos, carregados de um poder que nem mesmo os deuses antigos jamais empunharam. Aí estamos, em frente às portas do inferno. Iremos arrombar as grades, forçar as portas do inferno? Acredito que sim. Acredito que a tarefa do futuro é explorar os domínios do mal até que não reste uma partícula de mistério. Iremos descobrir as raízes amargas da beleza, aceitar raiz e flor, folhas e botão. Não mais podemos resistir ao mal: temos que aceitá-lo”.
O inferno? Sim, lá entraremos, guiados pelas mãos dos poetas que formam ao lado de Sade. Porque ali é onde nascemos, e não podemos pensar num céu que não comece e termine naquelas origens. No dia em que o homem souber realmente de si mesmo, podendo, a partir daí, olhar de frente para seus irmãos e procurar-se nos olhos destes, nesse dia – Antonin Artaud disse algo parecido – a poesia deixará de ser maldita porque todos os homens passarão a ser poetas. Será tempo, então, de rever tudo o que dissemos sobre Sade. Ele não teve a vida que merecia. Mas soube sobreviver à própria morte.

Aguinaldo Silva
                           (introdução ao livro “Filosofia na Alcôva ou Escola de Libertinagem” de Marquês de Sade, Editora de Brasília)

















O inimigo da palavra


Se a perdição do poeta é se fiar nos críticos, a perdição do crítico é se fiar nos poetas. Se diz e se repete que a linguagem poética é intraduzível em qualquer outra linguagem, mas freqüentemente se tomam versos por aforismas e se montam sobre eles verdadeiras teorias. O poeta navega em águas turvas, se alimentam de ambigüidades e contradições: mastiga-as e cospe flores ou chamas. Tem estômago de avestruz e boca de maçarico. É o inimigo número um da palavra.
No entanto, passa por seu amigo. Cria-se desse modo uma enorme confusão.
A coisa vem de longe, mas vamos ficar no Brasil mesmo. De um certo tempo para cá – vamos botar 1922 como marco – , os poetas brasileiros começaram a introduzir na poesia palavras que os seus antecessores – com raras exceções e uma delas é Augusto dos Anjos – não se atreviam a usar: palavras vulgares, como cinema, preguiça, macarrão, sopa, diurético, polícia, cuspo, etc. Eram realmente palavras novas no âmbito da linguagem poética. Mas corriqueiras na boca das pessoas. Palavras vivas, e que por isso mesmo chocavam, provocavam aquele curto-circuito de falara de que falara Pierre Reverdy. Deve-se concluir daí que, quando Murilo Mendes escreve que “as nuvens jogam boxe”, está apenas querendo usar a palavra boxe? No meu entender, a palavra boxe é o meio de que o poeta se vale para expressar a visão nova que teve das nuvens. Ao usá-la, Murilo transforma as nuvens e a palavra. Não obstante, por essas e outras, criou-se o mito de que poesia é palavra. (Não, não estou esquecendo Mallarmé; fiquemos por aqui mesmo, nos subúrbios.) Contribuiu para isso – que ironia! – o poeta Drummond, que escreveu:

Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intacta.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.

Leram só até aí, e leram mal. Não atentaram para o que o poeta afirma logo adiante:

Repara:
ermas de melodia e conceito,
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.

Não leram o poema seguinte, “A flor e náusea”. Não leram os demais poemas. Poesia se faz com palavras. Jogo de palavras? Não se deram conta de que seja em Murilo, em Jorge de Lima, em Vinícius, em Drummond, a palavra está úmida de vida, suja de sono e hálitos. E a geração de 45 – em termos genéricos – funda a idolatria da palavra. A palavra palavra. A palavra do dicionário. Limpa, reluzente, preciosa. Em Mário de Andrade, a palavra cinema é o cinema do bairro; em Drummond, a palavra cinema é um lugar qualquer da cidade onde um homem pode, subitamente, ser assaltado por uma lembrança. Mas em João Cabral cinema é a palavra cinema. As coisas se transformam em palavras e as palavras se substituem à realidade: 

Flor é a palavra flor.

João Cabral escreveu esse verso mas, como já se disse, não se deve confiar nos poetas. Pois logo acrescenta:

Verso inscrito no verso
   como manhãs no tempo.

E devolve a flor ao seu lugar. E a palavra ao lugar dela. Mas, de novo, entenderam mal. Não perceberam que, quando João diz “flor é a palavra flor”, ele transforma a palavra em flor, já que a flor mesmo ele não pode transformar. É preciso entender que João é um poeta que não aceita a poesia como dádiva do fortuito: ele quer fazê-la com a sua mão, construí-la como se constrói uma casa, tijolo a tijolo. Mas isso não significa que o seu objetivo é mostrar as palavras: pelo contrário, é mostrar as coisas. Ou melhor: comunicar a experiência complexa que a vida lhe transmite. Todo poeta tem por ofício provocar momentaneamente o desaparecimento das palavras.
No entanto, de uns tempos para cá, surgiram muitos críticos obsessionados com as palavras que há nos poemas. E se fala em texto, em contexto, em sintagma, em significado, em significante. Houve uma época em que se fazia o levantamento estatístico das palavras do poeta. Mais tarde, o conceito de entropia forneceu aos críticos uma nova base científica para seus diagnósticos: na linguagem prosaica as palavras se tornam imperceptíveis porque estão ajustadas a uma ordem habitual; o poeta introduz entropia (desordem) na linguagem e assim revela de novo as palavras. Há certa verdade nisto: o poeta de fato bagunça um pouco o coreto da linguagem. Mas não para que as palavras se tornem perceptíveis. Desarruma-o para romper a crosta verbal que impede o aflorar, na linguagem, da experiência viva. Um poeta pode até criar palavras mas não com o propósito de aumentar o volume dos dicionários, e sim para exprimir o novo. O mau poema é feito de palavras. O bom poema é feito contra as palavras.
O que dificulta a compreensão do fenômeno é que, para provocar o desaparecimento das palavras, o poeta tem que usá-las. E disso não há como sair. Houve poetas que se exasperaram tanto com as palavras que decidiram eliminá-las sumariamente: substituíram-nas por sinais ou por nada – deixaram a página em branco. Foram vítimas de um outro equívoco: o da autonomia da linguagem escrita. A relativa autonomia da linguagem escrita não deve ocultar o fato de que a fonte de toda linguagem verbal e especialmente da linguagem poética é a fala. E essa fala, que milhões de pessoas exercitam diariamente, está em permanente transformação, é o vasto repositório da história individual e coletiva, mistura complexíssima do velho e do novo, cuja energia obscura se desencadeia no poema. Para desencadeá-la, há que usar palavras – que a leitura consome como o fogo, um rastilho de pólvora. Se isso não acontece, não há poesia; há prosa. E má prosa.
Outra fonte de confusão é que, no poema, as palavras se tornam contundentes. Por exemplo, Camões escreveu:

e as nuvens na sua branda guerra.

E a palavra branda esplende. Mas se você reparar bem, ela se transforma no movimento das nuvens, vira nuvem se movendo: não é mais palavra. Ou é palavra no único sentido que a poesia pode aceitar: fala viva.
Não obstante, insiste-se em atribuir aos poetas a tarefa de criar uma linguagem atual para a nossa época. Trata-se de uma proposta absurda, porque não existe poesia se não existe linguagem atual: a poesia é a atualização da linguagem, ou seja, a expressão da experiência vital que se traduz na liberação da energia verbal acumulada. Segundo, porque a idéia de uma linguagem poética “atual” implica a hipótese de uma linguagem geral para todos os poetas, o que é impossível. E terceiro


FERREIRA GULLAR (do livro “Indagações de Hoje”, 1989, José Olympio Editora)
















PARA LER POESIA

Por que, atualmente, quase não se lê poesia?
As pessoas dão respostas variadas a essa pergunta. Algumas leram poemas no passado, depois se desinteressaram, acharam outras leituras mais atraentes. Outras dizem: “poesia não faz meu gênero, nunca fez.” Há ainda quem se diz “traumatizado” por versos chatos de leitura obrigatória nos tempos da escola. E há leitores que alegam ter feito tentativas fracassadas, que estranharam o “artificialismo” da linguagem, o “constrangimento” das rimas etc.
Haveria muito a dizer a respeito dessas alegações. Mesmo respeitando o gosto dos recalcitrantes, seria possível lhes apresentar réplicas que merecem alguma atenção. Antes de mais nada, lembremos que a necessidade humana de se expressar poeticamente é muito antiga. A linguagem  poética é anterior a linguagem em prosa, que veio mais tarde, com todas as suas complicações, conexões, conjunções etc.O fato de que ela venha durando há tanto tempo – milênios! – não sugere que a poesia corresponde a uma demanda profundamente enraizada na alma dos seres humanos?
A poesia pode, como as artes em geral, desempenhar papéis variados, funções diversas (de entretenimento, terapia, “propaganda” etc). Atualmente, há um consenso em torno da idéia de que ela é uma forma de conhecimento. Merquior escreveu certa vez:
Se há um ponto em que decididamente concordam as mais opostas teorias estéticas de hoje (por exemplo a estética de Heidegger com a de Lukács), é na aceitação comum da arte como forma de conhecimento.
As controvérsias proliferam quando se trata de determinar quais são as peculiaridades desse conhecimento artístico e poético.
A poesia tem trazido para os homens elementos sensíveis preciosos para eles se conhecerem melhor, para um incessante descobrimento – e uma constante invenção – de si mesmos. Os homens existem criando, inovando, surpreendendo. Há algo de espantoso na criação como tal. As pessoas se perguntam, naturalmente: como algo que não existia antes passou a existir? E há algo de espantoso no fato de que essa criação seja a criação de nós mesmos, da nossa realidade.
Na compreensão dessa realidade, que é infinita, algo sempre nos escapa. Jamais conseguiremos enquandrar o real nos nossos esquemas explicativos. A poesia tem a vantagem de nunca ser um esquema explicativo.
Já ouvi pessoas tentarem justificar o fato de não lerem poesia como uma consequência de má sorte, que as levou à leitura de maus poemas. É uma alegação frágil. Não conheço nenhum apreciador de cinema que tenha visto uma série de filmes ruins e tenha desistido de se deleitar com a sétima arte. Também já escutei quem se queixava de, no passado, ter esperado muito da poesia e ter se decepcionado com o que recebeu. É possível, contudo, que a culpa pela decepção esteja naquele que exorbitou na sua “cobrança”.
O poeta Carlos Drummond de Andrade já se defendia das cobranças exageradas, assegurando ao leitor que seu verso era bom, o ouvido do leitor é que havia entortado.
Não tem sentido pedirmos demais a poesia ou alimentarmos expectativas exageradas em relação à sua eficácia. A poesia não nos traz soluções mágicas para os nossos problemas. Merquior, no auge da sua aproximação com Lukács e com o marxismo (por volta de 1963), chegou a escrever que a poesia transforma os temas em problemas, lançando luz sobre situações humanas que desafiam a nossa compreensão. Vale a pena citá-lo: “No processo histórico de formação de uma nova práxis, os temas se transformam em problemas”. E: “O problema é a forma literária de conhecer o mundo pela práxis. Pois não é a práxis o que de fato enfrenta o mundo para superar a alienação?”.
A palavra poesia é usada no cotidiano com um sentido amplo e vago, que se presta a alguma confusão. Poesia aparece como qualquer manifestação de uma beleza difusa: manifestação que pode ser tanto uma qualidade como um defeito (dependendo do juízo de quem avalia o que é tido como “poético”, se o considera “pouco prático” ou “delicado”, “encantador”). Mesmo quando é a expressão de uma avaliação positiva, o adjetivo “poético” pode se prestar a um obscurecimento do significado da poesia como arte, como gênero literário, como procedimento mimético.
Há um poeminha gracioso do poeta espanhol Gustavo Adolfo Becquer: “Que es poesia? Dices, mientras clavas/ em mi pupila tu pupila azul./ Que es poesia? Y tu me lo perguntas?/ Poesia – eres tu”. O poeta, fascinado pela beleza dos olhos azuis que a moça está cravando nele, ao perguntar-lhe o que é poesia, declara-lhe, galante, que poesia é ela. De fato, sem contestar a legitimidade do galanteio, devemos reconhecer, num nível mais sóbrio, e conceitualmente mais exigente, que poesia não é a moça, mas o que o poeta escreveu sobre ela.
A busca de uma conceituação precisa não é uma exigência pernóstica, mas uma preocupação – derivada do compromisso que a consciência crítica é levada a ter – com o resgate de possibilidades que a poesia nos proporciona de termos acesso a um conhecimento peculiar da condição humana.
O que a poesia nos possibilita – e só ela pode nos possibilitar – é, na linguagem, uma melhor compreensão dos nossos sentimentos por meio da comparação com os sentimentos dos outros; e uma melhor compreensão dos sentimentos dos outros por meio da comparação com os nossos sentimentos.
Ninguém pode prentender ser “objetivo”, “científico”, nessa comparação, já que entre os sentimentos que serão comparados estarão sempre os sentimentos do próprio comparador.
A poesia me proporciona a descoberta de alguns dos meus sentimentos possíveis. Ela pode ampliar para mim o campo da minha capacidade de sentir coisas novas.
Todas as áreas das ciências humanas e das ciências sociais, em geral, têm muito a extrair da poesia. Com muitos anos de trabalho no campo da educação, surpreendo-me com o escasso aproveitamento da poesia na contribuição que os educadores poderiam dar a formação da autoconsciência dos educandos.
A experiência tem mostrado que, se não ampliamos o campo daquilo que sentimos (ou que podemos sentir), nossa capacidade intelectual fica prejudicada, nossa racionalidade se deforma. Ou o sensível e o racional se apóiam mutuamente ou ambos sofrem prejuízos.
A poesia desempenha um papel fundamental nessa ajuda mútua da razão e da sensibilidade: como linguagem que é, contribui para o exercício da autodisciplina da razão; como intuição, inspiração, “iluminação”, ela promove o aguçamento da sensibilidade.
Para enfrentar o desafio com que se defronta, o poeta precisa de uma linguagem que escape as comunicações utilitárias do cotidiano. Não necessariamente pelo uso de rimas (que não é obrigatório, e não deve ser visto como uma característica essencial da linguagem poética, em geral). O que caracteriza a linguagem poética é o fato de que – ainda recorrendo a uma expressão de Merquior – , para ela, “a carne da palavra é tão importante  quanto seu sentido”.
A linguagem do poeta não é a das comunicações e informações: é a da expressão – às vezes desconcertante – da extrema diversidade da condição humana. Existe nela algo de misterioso. Compreende-se que o poeta espanhol García Lorca tenha dito: “Todas as coisas têm um mistério e a poesia é o mistério que todas as coisas têm”. Compreende-se que o poeta alemão Friedrich Novalis tenha escrito: “a poesia é a religião original da humanidade”.
Não é casual que os grandes livros religiosos tenham uma linguagem poética. A Bíblia ensina: “No princípio, era o Verbo”.
Alguns leitores aceitam a linguagem bíblica, mas estranham a linguagem poética, acham-na esquisita. Comparam-na com a “objetividade” da prosa e indagam para que ela serve, qual a necessidade de se expressar assim.
Quando os ouço argumentar, tenho vontade de fazer algumas perguntas: não lhes parece que o discurso tradicional das autoridades é bem mais esquisito que a linguagem dos poetas? Não lhes parece que a retórica do comando, tão clara, tão sem ambigüidades, é bem mais perturbadora do que a poesia? O que é mais grave: o artificialismo (?) da linguagem poética ou a banalização da linguagem, em seu uso desatento, displicente, tal como o vemos, oferecido em espetáculo na TV?
Nas condições em que vivemos, num tipo de sociedade que gira em torno do mercado, tudo tende a virar mercadoria, tudo tende a ter um preço, os valores intrinsecamente qualitativos são diariamente bombardeados por um sistema pragmático, utilitário. Como escreveu o poeta espanhol Antonio Machado, “todo necio/ confunde valor y precio”.
A poesia é um movimento de resistência dos valores qualitativos. Pelo simples fato de continuar a existir, ela trava uma “guerra de guerrilhas” contra o princípio (que nos está sendo imposto, na prática) da “vendabilidade universal”. Com sua natural atenção às diferenças, com sua abertura para as singularidades, a poesia complica o que tem de ser complicado, relativiza o que tem de ser relativizado. E faz isso para salvar o que tem de ser salvo.
Do ponto de vista do emissor, a poesia, em sentido lato, pode tender a se manifestar predominantemente na fala de um “ele”, na terceira pessoa, na epopéia; na fala de um “tu”, na segunda pessoa, na poesia dramática (que pede a encenação), ou na fala de um “eu”, na primeira pessoa, na poesia lírica. Convém advertir, no entanto, que esse eu, que tem na poesia lírica seu lugar garantido, possui características especiais. De que eu se trata? O poeta só consegue “se dizer” quando leva aos outros algo que é pessoal, mas que também interessa a eles, quer dizer, tem universalidade. Não é, portanto, o eu do egocentrismo. Não é o pequeno eu do consumidor voraz, inflado pela exaltação que lhe fazem as empresas de publicidade.
O ensaísta e poeta mexicano Octavio Paz escreveu que a poesia não alimenta a vaidade do eu, porque o põe sob a disciplina da linguagem: “el ejercicio de la poesía exige el abandono, la renuncia al yo”. Para expressar sua experiência vivida de modo a sensibilizar seus leitores, o poeta não pode se limitar a falar do seu eu empírico: precisa falar do seu eu “condensado”.
Vale a pena lembrar, aliás, que Erza Pound observou que em alemão poesia é Dichtung, substantivo que corresponde ao verbo dichten, que significa “condensar”. A linguagem poética, então, seria uma condensação da experiência, envolvendo simultaneamente elementos intelectuais e emocionais.
Os elementos emocionais e sentimentais são fundamentais, mas não é com eles que a poesia se elabora. Por mais sinceros que sejam, eles se derramarão na inocuidade estética do sentimentalismo se não forem articulados por um pensamento criador. É pelo caminho do artifício que o poeta consegue ser convincente na criação do efeito do natural. Entre a espontaneidade absoluta e a eficiência do fingimento, Fernando Pessoa não vacilou: observou que o poeta “é um fingidor./ Finge tão completamente/ que chega a fingir que é dor/ a dor que deveras sente”.
Um texto poético tem distintos níveis de leitura. Quem se contenta com uma primeira impressão, passiva, sem verificar se não lhe caberia certo esforço de decifração, pode estar perdendo a oportunidade de ser premiado com uma pequena sorte grande. Pode estar saindo do restaurante após comer o acompanhamento, sem tocar no prato principal.
Podemos, por analogia, retomar na leitura dos poetas a distinção estabelecida por Freud entre o conteúdo manifesto e o conteúdo latente dos sonhos. Adaptando-a a poesia, podemos falar no conteúdo manifesto e no conteúdo latente de alguns poemas. O primeiro é aquele que nos vem em versos transparentes; o segundo é o que passa pelas entrelinhas.
Essa diferença no tipo de conteúdo não significa necessariamente que um deles deva ser sempre superior ao outro. Nosso objetivo, ao mencioná-la, é advertir que devemos ficar atentos para as diferenças entre os poemas: poemas distintos pedem leituras distintas.
Assim, o leitor tem de ficar atento a diversidade dos temas, dos estilos, das épocas, dos idiomas, das inclinações políticas, da condição social e das perspectivas filosóficas dos autores. Há diferenças, contudo, de outro tipo, existentes entre os melhores momentos e os menos bem resolvidos nas obras dos poetas: as diferenças entre a poesia que acolhe a pessoa do poeta e recebe esclarecimentos provenientes da sua biografia; e a poesia que não precisa de informações biográficas para ser apreciada.
A pessoa do autor interessa na exata medida em que contribui para elucidar alguma coisa importante relativa a obra. A poesia é que confere interesse ao poeta. Mesmo que o mundo do poeta seja, afinal, o nosso mundo, reconhecido como tal, ele aparece nos poemas mimeticamente recriado, transfigurado; e seu interesse passa a ser maior que o das vicissitude pessoais que eventualmente partilhamos com os poetas.
A poesia não é um movimento escapista, de fuga para outro mundo. O conhecimento que nela se realiza permanece sempre imanente. Cada poema traz em si, de algum modo, a marca das condições históricas em que foi elaborado.
Goethe chegou a afirmar que todo poema era “de circunstância”. Se a frase fosse interpretada como negação do poder de perdurar da poesia, se ela afirmasse que toda criação poética tem uma existência fugaz, estaria certamente equivocada. O que Goethe nos diz, entretanto, é que a universalidade alcançada na viagem do autor ao leitor, no caso da poesia, preserva algo da singularidade, do hic et nunc do momento da criação do poema.
Por que o poema bem-sucedido tem esse poder? Essa é uma das questões cruciais da estética. Poderíamos dar uma resposta sucinta: porque ele ganha na linguagem uma densidade significativa especial. Com o tempo, os poemas se articulam num movimento de vocação dialógica, que nos incita a rever e a ampliar nossa apreensão da realidade humana como um todo (ainda que inesgotável).
De fato, quem mergulha mais fundo no universo da poesia percebe que ele existe sendo constituído por um imenso diálogo entre os poetas. O discurso feito por determinados poetas em determinados poemas pode ser monológico (como diria Bakhtin); mas esse “monologismo” precisa ser avaliado com muita precaução.
A linguagem poética pode assumir características impositivas, pode dar a impressão de que o poeta ignora a possibilidade de que seu ouvinte (ou leitor) tenha razões próprias para pensar (ou sentir) diferentemente dele. Mas – atenção! – o tom impositivo pode ser a expressão de um sentimento forte que se sabe, no entanto, comprometido com circunstâncias momentâneas.
Na prosa a linguagem é predominantemente denotativa; na poesia, cresce a importância das conotações. Na prosa, aquele que fala (ou escreve) se empenha em ser fiel a um código objetivamente adequado a comunicação com os outros. A linguagem poética é alusiva, injeta imaginação no código, submetendo-o a situações surpreendentes, sempre um tanto diferentes daquelas para as quais ele foi criado.
Quando um sujeito diz “estou morrendo”, ele pode estar simplesmente passando para seu médico ou para seus familiares uma informação dramática. Se a frase for dita por um poeta apaixonado que procura comover sua amada, entretanto, “estou morrendo” significa outra coisa; significa que ele está dramatizando o que sente, tentando comover a pessoa que ama.
A exatidão e a objetividade da prosa permitem que o sujeito se imponha na sua linguagem. A poesia, independentemente do que dizem muitas vezes os poetas em tom categórico, relativiza o monologismo (condicionando sua expressão, que anseia por se eternizar, a um instante subjetivo, fugaz).
A poesia compõe um quadro polissêmico, infinitamente diversificado, no qual todos os poetas falam, e – mesmo quando se ignoram – mandam recados uns aos outros, interpelam uns aos outros. Expressam-se, enfim, dialogicamente.
Por mais que, instalados cada um em sua singularidade, os poetas se sintam solitários, dispostos a preservar sua identidade altamente peculiar, e possam sublinhar sua originalidade, observando as diferenças que os separam uns dos outros; por mais que sejam efetivamente sujeitos pulverizados, cada um expressando seu eu, os poetas, na incomensurável diversidade de suas falas, constituem não um coro – com suas harmonias tão disciplinadas! –, mas um quadro de intercâmbio e colisão de discursos, uma justaposição quase caótica de falas, resultando, entretanto, num diálogo surpreendente, revelador de uma discussão indireta que ninguém sabia estar sendo travada.
Os poemas, no seu conjunto, mostram a realidade da proliferação dos eus, porém  apontam também para o sonho de um “nós”, quer dizer, de uma comunidade que não dissolve os indivíduos, destruindo-lhes a autonomia, mas, ao contrário, por meio da solidariedade, pode fortalecê-los na independência de cada um.
Só quem mergulha no mundo da poesia, só quem lê os poetas, pode extrair dessa aventura a efetiva compreensão da riqueza desse diálogo. Mesmo porque o diálogo entre os poetas depende da colaboração e da complementação dos leitores; depende da sensibilidade do leitor para promovê-lo, para encená-lo.
A poesia é, de fato, um gênero árduo, que exige muito do poeta, mas também exige muito do leitor: exige que o leitor se esforce para “receber” o poeta (o Outro) de maneira a poder assimilar o que ele lhe traz, “traduzindo-o” ou “recriando-o” na sua linguagem pessoal. Quer dizer: a poesia exige do leitor que ele libere ou crie e desenvolva a parte de poeta que precisa existir nele.


LEANDRO KONDER
(capítulo do livro “As artes da palavra: elementos para uma poética marxista”)

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